quinta-feira, 13 de julho de 2017

O casamento de Pachamama com Gaia

O encontro feliz da Pachamama com Gaia

Zaffaroni rastreia o surgimento do projeto civilizatório e o faz com grande riqueza bibliográfica

Leonardo Boff *

Quero apresentar um livro que sairá brevemente traduzido no Brasil A Pachamama e o ser humano (Ediciones Colihue 2012) de Eugenio Raúl Zaffaroni bem conhecido no Brasil nos meios jurídicos. É um reconhecido magistrado argentino, ministro da Suprema Corte de 2003 a 2014 e professor emérito da Universidade de Buenos Aires.
O presente livro se inscreve entre as melhores contribuições de ordem ecológica e filosófica que se tem escrito ultimamente. Ele se situa na esteira da encíclica do Papa Francisco, também argentino, Laudato Si,sobre o cuidado da Casa Comum (2015). Zaffaroni aborda a questão da ecologia integral, em especial da violência social e particularmente contra os animais com uma informação admirável de ordem científica e filosófica.
O mais importante do livro é a crítica ao paradigma dominante, surgido com os pais fundadores da modernidade do século XVI e XVII que ex abrupto introduziram uma profunda cissura entre o ser humano e a natureza. O contrato natural, presente nas culturas desde tempos imemoriais, do Ocidente e do Oriente, sofreu um corte fatal e letal.
A Terra deixou de ser a Magna Mater dos antigos, a Pachamama dos andinos e a Gaia dos contemporâneos, portanto algo vivo e gerador de vida, para ser transformada numa coisa inerte (res extensa de Descartes), num balcão de recursos colocados à disposição da voracidade ilimitada dos seres humanos. Clássica é a formulação de René Descartes: o ser humano é o “maître et possesseur” da natureza, vale dizer, é o senhor e dono da natureza. Ele pode fazer dela o que que bem entender. E o fez.
A cultura moderna se construíu sobre a compreensão do ser humano como dominus como senhor e dono de todas as coisas. Estas não possuem valor intrínseco, como vão afirmar mais tarde a Carta da Terra e com grande vigor a encíclica papal. Seu valor reside apenas em poder estar a serviço do ser humano.
O projeto é o do poder entendido como capacidade de dominação sobre tudo e sobre todos, a partir de quem mais poder possui. No caso, os europeus que realizaram a aventura do submetimento da natureza, da conquista do mundo, da colonização de inteiras nações, do genocídio, do ecocídio e da destruição de culturas ancestrais. E o fizeram usando a força brutal das armas, da espada e também da cruz. Hoje em dia com armas, capazes de extingir a espécie humana.
Zaffaroni rastreia o surgimento deste projeto civilizatório e o faz com grande riqueza bibliográfica. Enfrenta com coragem e com grande liberdade crítica os presumidos corifeus do pensamento moderno como Hegel, Spencer, Darwin e Heidegger. Restrinjo-me às críticas que faz ao Hegel do Geist (espírito). Com sua filosofia-ideologia tornou-se o expoente maior do etnocentrismo. Herbert Spencer com seu biologismo estabeleceu a raça branca como superior e todas as demais tidas como inferiores, o que acabou por legitimar o colonialismo e todo tipo de preconceito.
Zaffaroni aborda a questão do animal visto como sujeito de direitos. Enfatiza eie:”ao nosso juízo, o bem jurídico no delito de maus tratos a animais não é outro que o direito do próprio animal a não ser objeto de crueldade humana, para o qual é mister reconhecer-lhe o caráter de sujeito de direitos”. O autor é duro na constatação “de que nos convertemos nos campeões biológicos da destruição intra-espécie e nos depredadores máximos extra-espécie”. Sua proposta é clara:”Somente substituindo o saber do dominus pelo de frater podemos recuperar a dignidade humana” e sentirmo-nos irmados com os demais seres.
A América Latina foi a primeira a inaugurar um constituionalismo ecológico, inserindo nas constituições do Equador e da Bolívia os direitos da natureza e da Mãe Terra. Anteriormente, e também por primeiro, foi o México. a introduzir em sua constituição em 1917 os direitos sociais. Zaffaroni faz a apologia das virtuadalidades criadoras de harmonia do ser humano com a natureza que a visão andina do “bem viver e conviver”(sumac kawsay) comporta; também de Gaia, a Terra como um super-organismo vivo que se auto-regula para sempre produzir e reproduzir vida. A Pachamama e Gaia são dois caminhos que se encontram “numa feliz coincidência do centro e da periferia do poder planetário”. Ambos são portadores de esperança de uma Terra, Casa Comum, na qual todos os seres são incluídos. Eles nos libertarão das ameaças apocalípticas do fim de nossa civilização e da vida.
Zaffaroni nos traz uma brilhante e convincente perspectiva, crítica severa por um lado, mas cheia de esperança por outro. Vale lê-lo, estudá-lo e incorporar em nossa compreensão sua visão de uma ecologia holística e profundamente integradora de todos os elementos da natureza e do universo.

* Leonardo Boff é filósofo, teólogo e professor aposentado de Ética da UERJ

Fonte: CARTA MAIOR
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... seguia em sua bicicleta pela orla da praia. Uma rua de terra batida de pouco movimento de veículos, em um dos lados algumas residências e do outro a praia, cujo acesso se dava de maneira direta ou através de pequenas trilhas entre a vegetação, pequenos arbustos típicos de região de restinga, onde proliferavam cactus e algumas árvores frutíferas como pitangas e acerolas. Seguia em direção ao oeste em um final de tarde, com o sol frontal. Parou e recolheu algumas pitangas, fruta de alto teor de vitamina C. Consumiu algumas, sem antes esfregá-las em sua camisa pra tirar o excesso de poeira. Ainda como sol em final de tarde levou a bicicleta para a praia, em local de frente para a rua que dava acesso a sua residência. Apoiou-a na areia, certificando-se de que estava firme, e sentou-se na areia da praia para observar o mar, sempre diferente a cada dia, fosse em cor, movimento, odor ou som, no entanto, sem jamais de deixar de ser o mesmo, seu confidente fiel naqueles dias em que estava separado de Pachamama. Fascinado pelo mar não se cansava em contemplá-lo em sua beleza, força e grandeza. Foi do mar que surgiu a vida na Terra, a Gaia, e em seguida se imaginou um peixe, ou como praticara em seu arsenal de psicotecnologias vivenciava outras formas animais em seu ser através de contato com o sistema límbico. Sorriu com aqueles pensamentos que lhe conferiram uma imagem de peixe. Mudou de posição, deitando-se na areia com as pernas flexionadas e as solas de seus pés no chão, apoiando as duas mãos por baixo de sua cabeça. Do mar passou ao céu, sempre próximos na linha do horizonte, inseparáveis, assim como em sua vida com Pachamama. Fitando um azul infinito ao som e aroma do mar permitiu que seus pensamentos divagassem, sentindo a linha do horizonte, seu corpo e sua mente como um todo integrado e interdependente. Sabia que corpo e mente não eram campos distintos, mas complementares, interdependentes, como sinaliza a nova Física. Essa interdependência também lhe parecia coerente com a comunicação a distância, pois a matéria, seu corpo, interage com as formas de pensamento que lhe são enviadas, energia. Em sendo verdadeiro, pensou cada ser humano seria parte apenas de um grande Ser,  A Humanidade, um grande corpo onde todas as partes estariam em constante interação, naturalmente interdependentes, e não isoladas como se acredita ainda que sejam. O conceito de humanidade enquanto um corpo único pode ser algo revolucionário, imaginou, enquanto desviava seu olhar para uma pequena aeronave que cruzava o céu. Ao mesmo tempo, a Teoria de Gaia, que contempla a interdependência de todas as formas de vida na Terra, daria suporte ao conceito de humanidade enquanto um corpo vivo.
Levantou a cabeça, olhou o mar, e voltou a deitar-se, olhando para o azul infinito. Pensou que o mundo seria completamente diferente em todas as dimensões da vida e ainda, a forma de organização social do mundo como se conhece atualmente estaria em sentido oposto a de um mundo em que se provasse a humanidade enquanto um grande e único corpo. Desta forma, o conceito que emergiu no final da década de 1970, ou seja, que não mais existiria sociedade e apenas indivíduos estaria totalmente equivocado, uma vez que as partes, as pessoas, não existiriam totalmente isoladas, indivíduos, pois seriam sempre interdependentes, em todas as dimensões, inclusive a social. Esse aspecto de cooperação estaria em harmonia com a Teoria de Gaia, que sem cooperação a vida na Terra seria inviável e impossível. Assim sendo, pensou, o mundo atual estaria em descompasso com a própria vida na Terra, o que em tese poderia explicar o crescimento de todo tipo de conflitos e a catástrofe ambiental que se aproxima, fruto de um processo de competição pela força. Com o sol saindo de cena, levantou-se, pegou a bicicleta e caminhando pensava no tão esperado dia em que Gaia e Pachamama selariam a união...

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