sábado, 26 de novembro de 2016

O Homem e seu tempo






Encontros Cariocas - 6      O Homem e seu tempo


Urbanos  -  arte PAPIRO

Manhã de mais um dia, não muito diferente dos outros dias, e o homem, rigorosamente no mesmo horário, saía de casa para mais um dia de trabalho. Como de costume, igual a todos os dias, fez o mesmo percurso até a estação do metrô, onde embarcaria no trem, no mesmo vagão. E assim, em mais um dia, aconteceu. No vagão, sentado em um dos raros bancos para as dimensões do lugar, encontrou pessoas de todos os dias, em mais um dia com quase sempre as mesmas pessoas. Ao seu lado, como já ocorrera em outros dias, uma mulher, companheira de viagem, cumprimentou-o formalmente. Em algumas viagens, a mulher do lado, sem qualquer relação ao filme de François Truffaut, procurava conversar com aquele homem. Sujeito de poucas palavras, econômico em expressões, sempre estava atento a tudo que acontecia ao seu redor. Não poderia ser de outra forma, já que vivia em situação especial, como ele mesmo definiu, e, assim sendo tinha um repertório de procedimentos sempre que alguém dele se aproximava. Sua condição, especial para ele, exigia a aplicação de um grande número de filtros nas relações interpessoais, pois sua desvantagem era desproporcional. Muitas pessoas, inclusive a mulher do lado, poderiam conhecê-lo e com isso desfrutar da condição especial daquele homem; fosse por curiosidade, por reprodução quanto a um suposto conhecimento sobre a vida daquele homem, ou até mesmo como parte interessada e direcionada em fazê-lo melhor conhecido por todos que , de todas as formas, ainda, apesar do longo tempo, era tido como um mistério, o que de certa forma não era de todo errado, porém, também, não era de todo verdadeiro. O mistério, que para muitos existia, fazia parte da condição especial daquele homem, pois assim construiu seu repertório de procedimentos necessários à sua sobrevivência.

Durante todo o período em que assim esteve nessa condição, optou por não fazer amigos, não aprofundar nenhum tipo de conversa, mantendo-se no trivial social, de poucas palavras, não permitindo qualquer profundidade, ainda que nem tanto profundo. Quase sempre identificava as intenções das pessoas que dele se aproximavam, inclusive parentes próximos, vizinhos e outros, descartando -os de tal forma que com o passar do tempo tais pessoas passaram a tomar cuidados adicionais quando dele se aproximavam, comunicando apenas o que se fazia necessário.

No entanto, naquele dia no vagão, a mulher ao lado, que em outras viagens no mesmo vagão e no mesmo horário procurava esticar conversas com o homem, resolveu conversar um pouco mais do que em outros dias. O homem, que em outras ocasiões identificou assuntos e contextos sobre sua vida na conversa da mulher, procurou não avançar, ficou mais atento, mais econômico nas palavras. As conversas do metrô versavam sobre o dia-a dia da vida social, com política, problemas urbanos, de transporte e até mesmo futebol, criando um clima leve onde os dois não ultrapassavam limites que , de forma conscientes ou não , tinham sido estabelecidos. Entretanto, naquele dia, tão logo desembarcaram da estação no centro da cidade, a mulher, para surpresa do homem, lhe fez uma pergunta pessoal, algo que até então não ocorrera. Logo na saída da estação ela se virou para o homem e perguntou:

- por que você quase não fala e é tão econômico nas palavras.

O homem olhou para a mulher, pensou por um instante e pediu para que interrompessem o caminhar ali na saída da estação. Se afastaram, um pouco, do fluxo de pessoas que caminhava saindo da estação e foram para um canto. A mulher demonstrava imensa curiosidade, até mesmo uma expressão de espanto, receio, ou algo similar, mas não esboçou nenhum tipo de resistência. Parados de pé, de frente um paro o outro, o homem olhou firme nos olhos da mulher e disse:

- vê aquele bar ali em frente, disse fazendo um movimento com o rosto e sugerindo que a mulher olhasse o local.


- sim, disse a mulher revelando um misto de preocupação, ansiedade e surpresa.

- pois bem, continuou o homem, Você quer saber porque quase não falo, então você terá a oportunidade de satisfazer a sua curiosidade, hoje, no final da tarde, quando for para casa.

A mulher, um pouco confusa com a situação, aceitou quase que levada pelo inusitado e, assim sendo, marcaram um encontro naquele dia no bar próxima a estação, para falar sobre o não falar.

No horário previamente marcado o homem chegou ao bar, puxou uma cadeira e sentou-se, de frente para a rua, pois um de seus procedimentos era não sentar em nenhum espaço público de costas para a rua, fruto de sua condição especial e para evitar surpresas. Procurava se acomodar em locais que pudessem proporcionar uma visão ampla, das pessoas, dos ambientes. Logo em seguida a mulher chegou, demonstrando tranquilidade e um sorriso pronto, algo bem diferente da reação que apresentou pela manhã.

Pediram algo para beber, um chopp para a mulher e um suco de graviola para o homem.

Respirou fundo, organizou a postura procurando ficar confortável, olhou para a mulher e disse:

- então, você quer saber porque não falo.

A mulher abriu um pouco mais os olhos e sua pupila demonstrou uma leve dilatação.

Antes que ela falasse qualquer coisa o homem continuou

-vou explicar para você, assim como já fiz em outras ocasiões, não muitas a bem da verdade, com outras pessoas que de alguma forma estiveram na mesma situação de você. Importante que você saiba, e digo importante pois é a base do conceito, que tudo aquilo que você não compreender do que vou falar para você, e caso você queira explicações adicionais, me reservo o direito de não lhe informar e de não responder nada mais.

A mulher manteve a mesma expressão de surpresa, agora com as pupilas ainda mais dilatadas.

O homem, assim, continuou. Atualmente, e já há alguns anos, levo minha vida em condições especiais. Tais condições, que me reservo o direito de não especificá-las, mesmo que você não as conheça, o que também pode acontecer, mas é raro. Como disse, e repito, tais condições deixam minha vida em situação desfavorável em relação as pessoas e até mesmo em situações de risco de morte. logo, todo cuidado que procuro ter, ainda é pouco, motivo pelo qual não aprofundo nenhum tipo de conversa ou relacionamento, seja em preto e branco, ou menos ainda em cores. Por algumas vezes, nas viagens de metrô em que trocamos palavras, os assuntos foram agradáveis e desprovidos de referências externas pré- relacionadas por supostas informações falsamente difundidas . Já em outras pude observar tais referências, expressas na forma de demostrar conhecimento ou apenas como forma de me testar. Assim sendo, a economia a que você se referiu se faz necessária. No entanto, para que você tenha uma resposta clara sobre aquilo que me questionou, , também me acho no direito de fazer uma pergunta pessoal, onde , para consolidar esta explicação, apresento quatro condições em que você pode estar situada em relação a mim ao longo desses dias em que conversamos. Você , se assim desejar, não precisa dizer em que situação se encontra. 


Organizou mais uma vez sua postura e passou a listar as condições. 

A mulher ficara ainda mais curiosa.

1 - você conhece muito bem a situação em que me encontro, e se aproxima de mim por curiosidade, para tirar um sarro, ou, na pior das hipóteses, para me conduzir a algo previamente combinado com outras pessoas;

2 - você se aproxima de mim pois , além de me conhecer se interessa por meus assuntos, sem qualquer outro interesse menor.

3 - você não conhece minha situação especial, o que jamais aconteceu com pessoas que se aproximam

4 - você não precisa responder, pode ficar muda.


Pois bem, pode ficar a vontade, e se manifestar, se assim desejar.


A mulher, que já tinha bebido todo o chopp e bebia o segundo copo, olhou firme nos olhos do homem demonstrando segurança e disparou:

- você é muito seguro de si, ou demonstra ser, independente de como eu tenha chegado a essa conclusão. Quanto as situações apresentadas, a última pode ser descartada, por motivos óbvios. No entanto, as situações 1, 2 e 3 podem muito bem fazer parte da minha verdade, talvez, e é bem provável que assim seja, todas, de alguma forma, se manifestam quando conversamos, uma mais, outra menos, porém, a maneira como você apresentou a questão, caso eu especifique a resposta, vai me deixar nua, e isso não me interessa, como também não me agrada. Assim sendo , acho que estamos conversados, disse com alguma firmeza.

O homem, que ouvia e observava atentamente, depois de um pequeno silêncio, disse

- você nua deve ser algo estonteante, bem interessante.


A mulher, sem esconder a reação, demonstrou um baita susto e disparou com firmeza ainda maior:

- agora você extrapolou e está faltando com o respeito comigo. 

Demostrando um irritação, já escancarada, a mulher continuou. 

- Não esperava ouvir isso, e saiba que sempre lhe respeitei, independente de sua situação. 

Ainda mais irritada, disse. 

- Vou pagar minha despesa e vou embora. 

Fez um movimento procurando o garçon e acenou para que trouxesse a conta.

Depois de um breve silêncio, quando os olhos não se cruzaram, o homem disse;

- ouça, não tive a menor intenção em faltar com o respeito com você. Acredite. Sua beleza nua, não vem ao caso, não me interessa, mesmo que assim tenha dito. Não é essa a questão nem o foco. Disse isso, apenas para manifestar em você uma reação, como de fato aconteceu e . que de alguma forma, revelou um pouco de você, ainda que para isso tivesse que irritá-la.


A mulher, que estava irritada, manteve a irritação , porém com um misto de surpresa e curiosidade, afinal, que homem era aquele. Ouviu com atenção , e nada disse , porém ficou calma e ainda esboçou um sorriso tímido, que demonstrava sinceridade.

Pagaram a conta e ao se levantarem o homem disse:


- agora podemos voltar ao metrô, como fazemos todos os dias, conversando com mais ou menos palavras, ou sem conversa, claro, dependendo de como você se comportar.

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