sábado, 5 de novembro de 2016

Há um cheiro de 1964 no ar

Hildegard Angel: “É meu dever dizer aos jovens o que é um golpe de estado

Postado em 05 Nov 2016
por : Kiko Nogueira


De Hildegard Angel, em seu blog.

Há cheiro de 1964 no ar. Não apenas no Brasil, mas também nas vizinhanças. Acho então que é chegada a hora de dar o meu depoimento.

Dizer a vocês, jovens de 20, 30, 40 anos de meu Brasil, o que é de fato uma ditadura.

Se a Ditadura Militar tivesse sido contada na escola, como são a Inconfidência Mineira e outros episódios pontuais de usurpação da liberdade em nosso país, eu não estaria me vendo hoje obrigada a passar sal em minhas tão raladas feridas, que jamais pararam de sangrar.

Fazer as feridas sangrarem é obrigação de cada um dos que sofreram naquele período e ainda têm voz para falar.

Alguns já se calaram para sempre. Outros, agora se calam por vontade própria. Terceiros, por cansaço. Muitos, por desânimo. O coração tem razões…

Eu falo e eu choro e eu me sinto um bagaço. Talvez porque a minha consciência do sofrimento tenha pegado meio no tranco, como se eu vivesse durante um certo tempo assim catatônica, sem prestar atenção, caminhando como cabra cega num cenário de terror e desolação, apalpando o ar, me guiando pela brisa. E quando, finalmente, caiu-me a venda, só vi o vazio de minha própria cegueira.

Meu irmão, meu irmão, onde estás? Sequer o corpo jamais tivemos.

Outro dia, jantei com um casal de leais companheiros dele. Bronzeados, risonhos, felizes. Quando falei do sofrimento que passávamos em casa, na expectativa de saber se Tuti estaria morto ou vivo, se havia corpo ou não, ouvi: “Ah, mas se soubessem como éramos felizes… Dormíamos de mãos dadas e com o revólver ao lado, e éramos completamente felizes”. E se olharam, um ao outro, completamente felizes.

Ah, meu deus, e como nós, as famílias dos que morreram, éramos e somos completamente infelizes!

A ditadura militar aboletou-se no Brasil, assentada sobre um colchão de mentiras ardilosamente costuradas para iludir a boa fé de uma classe média desinformada, aterrorizada por perversa lavagem cerebral da mídia, que antevia uma “invasão vermelha”, quando o que, de fato, hoje se sabe, navegava célere em nossa direção, era uma frota americana.

Deu-se o golpe! Os jovens universitários liberais e de esquerda não precisavam de motivação mais convincente para reagir. Como armas, tinham sua ideologia, os argumentos, os livros. Foram afugentados do mundo acadêmico, proibidos de estudar, de frequentar as escolas, o saber entrou para o índex nacional engendrado pela prepotência.

As pessoas tinham as casas invadidas, gavetas reviradas, papéis e livros confiscados. Pessoas eram levadas na calada da noite ou sob o sol brilhante, aos olhos da vizinhança, sem explicações nem motivo, bastava uma denúncia, sabe-se lá por que razão ou partindo de quem, muitas para nunca mais serem vistas ou sabidas. Ou mesmo eram mortas à luz do dia. Ra-ta-ta-ta-tá e pronto.

E todos se calavam. A grande escuridão do Brasil. Assim são as ditaduras. Hoje ouvimos falar dos horrores praticados na Coreia do Norte. Aqui não foi muito diferente. O medo era igual. O obscurantismo igual. As torturas iguais. A hipocrisia idêntica. A aceitação da sobrevivência. Ame-me ou deixe-me. O dedurismo. Tudo igual. Em número menor de indivíduos massacrados, mas a mesma consistência de terror, a mesma impotência.

Falam na corrupção dos dias de hoje. Esquecem-se de falar nas de ontem. Quando cochichavam sobre “as malas do Golbery” ou “as comissões das turbinas”, “as compras de armamento”. Falavam, falavam, mas nada se apurava, nada se publicava, nada se confirmava, pois não havia CPI, não havia um Congresso de verdade, uma imprensa de verdade, uma Justiça de verdade, um país de verdade.

E qualquer empresa, grande, média ou mínima, para conseguir se manter, precisava obrigatoriamente ter na diretoria um militar. De qualquer patente. Para impor respeito, abrir portas, estar imune a perseguições. Se isso não é um tipo de aparelhamento, o que é, então? Um Brasil de mentirinha, ao som da trilha sonora ufanista de Miguel Gustavo.

Minha família se dilacerou. Meu irmão torturado, morto, corpo não sabido. Minha mãe assassinada, numa pantomima de acidente, só desmascarada 22 anos depois, pelo empenho do ministro José Gregori, com a instalação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos no governo Fernando Henrique Cardoso.

Meu pai, quatro infartos e a decepção de saber que ele, estrangeiro, que dedicou vida, esforço e economias a manter um orfanato em Minas, criando 50 meninos brasileiros e lhes dando ofício, via o Brasil roubar-lhe o primogênito, Stuart Edgar, somando no nome homenagens aos seus pai e irmão, ambos pastores protestantes americanos – o irmão, assassinado por membro louco da Ku Klux Klan. Tragédia que se repetia.

Minha irmã, enviada repentinamente para estudar nos Estados Unidos, quando minha mãe teve a informação de que sua sala de aula, no curso de Ciências Sociais, na PUC, seria invadida pelos militares, e foi, e os alunos seriam presos, e foram. Até hoje, ela vive no exterior.

Barata tonta, fiquei por aí, vagando feito mariposa, em volta da fosforescência da luz magnífica de minha profissão de colunista social, que só me somou aplausos e muitos queridos amigos, mas também uma insolente incompreensão de quem se arbitrou o insano direito de me julgar por ter sobrevivido.

Outra morte dolorida foi a da atriz, minha verdadeira e apaixonada vocação, que, logo após o assassinato de minha mãe, precisei abdicar de ser, apesar de me ter preparado desde a infância para tal e já ter então alcançado o espaço próprio. Intuitivamente, sabia que prosseguir significaria uma contagem regressiva para meu próprio fim.

Hoje, vivo catando os retalhos daquele passado, como acumuladora, sem espaço para tantos papéis, vestidos, rabiscos, memórias, tentando me entender, encontrar, reencontrar e viver apesar de tudo, e promover nessa plantação tosca de sofrimentos uma bela colheita: lembrar os meus mártires e tudo de bom e de belo que fizeram pelo meu país, quer na moda, na arte, na política, nos exemplos deixados, na História, através do maior número de ações produtivas, efetivas e criativas que eu consiga multiplicar.

E ainda há quem me pergunte em quê a Ditadura Militar modificou minha vida!

Fonte: DIÁRIO DO CENTRO DO MUNDO
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Há um forte cheiro de 1964 no ar. E mais, um odor insuportável de dezembro de 1968.

Um golpe derruba um governo legítimo e lideranças populares são perseguidas ferozmente, criminalizadas e presas.

Polícia invade escola do MST, atirando em pessoas indefesas e desarmadas. Amanhã farão o mesmo em sindicatos, contra movimentos sociais, estudantes e qualquer pessoa que se manifeste contrária ao regime que avança.

Esse passado, que não foi devidamente passado a limpo, ameaça voltar; agora com capas pretas no lugar de tanques, travestido de legalidade por um processo moralizante e civilizatório, ancorado por uma ditadura da narrativa.


Site do Globo ,00:18/05/11/2016 :'de acordo com a direção dos sem-terra, operação teria invadido a ENFF'. 
Teria?  Há filmes, relatos, fotos, feridos... (nota do PAPIRO:  para outras coisas, mesmo sem nenhuma prova, globo tem convicção )
Fonte: CARTA MAIOR

Sobre esse passado o PAPIRO produziu e publicou em abril de 2012 o texto abaixo:

Rio Zona Norte - 2
O Aparelho do Lins de Vasconcelos

20.04.2012

A hora para passar a limpo o passado é agora, no governo Dilma, com a Comissão da Verdade.

Nas sangrentas batalhas travadas pela oposição conservadora e os movimentos sociais, o conhecimento sobre a verdadeira história do período da ditadura militar no Brasil parece que não mais aceita adiamentos. Em diferentes países a verdade foi passada a limpo, com punições ou não, a história seguiu.

Na África do Sul, que viveu, talvez, o mais brutal e bestial regime de segregação racial, com milhares de mortos, a transição para a democracia não permitiu dissimulações ou falsas anistias. A Comissão da verdade, brilhantemente dirigida pelo nobelista pela paz Desmond Tutu, colocou frente a frente os dois lados da disputa. O processo foi doloroso, fazendo com que Tutu fosse às lágrimas por diversas vezes, diante das declarações. Assassinos e familiares dos mortos, independente das cores e do lado, falavam de suas angústias, tristezas e sofrimentos, por conta dos anos de luta. O processo foi fundamental para que o país conhecesse sua história, valorizasse seu passado, e pudesse olhar com firmeza para o futuro. A África do Sul, independente dos sérios problemas ainda a resolver, ficou conhecida como o país de todas as cores, lugar onde a ignorância e a estupidez, tiveram como resposta a civilidade e o diálogo.

Na América do Sul, que sofreu com a barbárie de ditaduras, diversos países trouxeram a tona a verdade sobre os anos em que o sol não brilhou, exatamente na região do Império do Sol.
Em alguns países, os ditadores foram julgados, condenados e cumprem penas por seus crimes. Em outros, a verdade pode ser conhecida, com anistia para todos os lados. O importante, em todos os casos, foi a restauração da ordem democrática, a remoção do entulho autoritário dos poderes e, principalmente, a verdade, condições essenciais para evolução de uma nação.

Nesse contexto, me veem lembranças do ano de 1973.
Naqueles já distantes anos, onde corujas e pirilampos bailavam entre sacis e fadas com os Secos&Molhados, Raul Seixas não sentava no trono de seu apartamento com a boca cheia de dentes esperando a morte chegar e os Novos Baianos enlouqueciam a ditadura e sua patética censura, conheci Lucas.
De um dia para o outro, Lucas, que fora amigo na faculdade, sumiu.

Décadas depois nos reencontramos e pude conhecer um pouco de sua história.

Lucas militava em uma organização contra o regime militar.
Na faculdade era de poucas palavras, mesmo porque qualquer conversa com mais de três pessoas podia ser vista como conspiração comunista.
Seu grupo de ação alugou uma casa que servia de encontro , no pacato bairro do Lins de Vasconcelos, zona norte da cidade do Rio de Janeiro.

O Lins era um bairro estratégico para o funcionamento de aparelhos. Sem ser um bairro de passagem, com pouco movimento, residencial  e com casas com cadeiras na calçada e na fachada escrito que é uma lar, tinha saídas para o subúrbio pelo alto Méier, para o centro pelo Engenho Novo e para a zona oeste, pela estrada Grajaú - Jacarepaguá.

O aparelho que Lucas frequentava ficava numa dessas ruas tranquilas, entretanto eles jamais poderiam imaginar, que na casa em frente morava um jornalista, que trabalhava para a ditadura como torturador. A rua, como em todo bairro da zona norte , tinha seus personagens.

Seu Pinto era um deles. Aposentado, vivia com sua mulher, Dona Walquíria em uma casa próxima. Sujeito de pouca instrução, mas de grande astúcia e ótimo observador. Passava a maior parte dos dias sentado em uma cadeira na porta de sua casa, ora lendo jornais, ora bebendo cachaça.

Na casa em frente a de Lucas, vivia Silvério, o jornalista torturador, casado com Juliana. Tinham um filho, Pedro. Silvério não despertava suspeitas -  menos para Seu Pinto, claro - por ser um sujeito família que frequentava as missas aos domingos na igreja do bairro. Tinha uma rotina, que para Seu Pinto era estranha. Saía de casa as 5 horas da manhã, todos os dias, voltava por volta das 10 horas, saía novamente por volta das 17 horas e voltava às 21 horas. As vezes ficava o dia todo fora de casa. Era um sujeito alto, de olhos claros, com uma aparência saturniana.

No aparelho viviam diariamente Paulo e Vera.
Simulavam um casal recém casado, tinham em torno de 25 anos e para evitar fofocas , também frequentavam a missa aos domingos, mesmo sendo marxistas de carteirinha. Tinham uma caminhonete DKW, um pouco surrada, carro típico de aparelho. Não tinham uma rotina fixa, raramente recebiam visitas que pudessem ser vistas pelos vizinhos.
Mesmo assim, Seu Pinto desconfiava deles.
Para os encontros e reuniões, que aconteciam com frequência, Paulo e Vera traziam as pessoas escondidas na caminhonete, sendo que muitos, ficavam , as vezes, semanas na casa, sem sair a rua ou aparecer para a vizinhança. Quando iam embora, também saim escondidos no carro.

Seu Pinto achava que Vera tinha uma expressão de medo constante, e achava que ali tinha coisa.

Acontece , que em um determinado dia, Igor,  que vivia no aparelho e entrava escondido no carro, pelo vidro da janela avistou Silvério saindo de casa. Levou um susto tremendo, pois reconheceu Silvério como seu torturador.

Certa vez, Igor que caminhava pela Avenida Rio Branco, no centro do Rio de Janeiro, onde estava estudando a rotina do Banco Irmãos Guimarães na esquina da Rua da Alfândega para uma ação de expropriação, foi agarrado e jogado em um carro. Foi levado para uma órgão de informação das forças armadas, nas proximidades da Praça XV. Ficou no local por oito horas , onde foi interrogado, torturado e mandado embora, por atitude suspeita. No interrogatório estava presente Silvério, que além de trabalhar em um grande conglomerado de mídia carioca como jornalista, também colaborava como torturador para o regime, assim como os donos do conglomerado midiático. Igor levou vários choques elétricos nos órgãos genitais, e diversos telefones, fazendo ficar sem audição por umas três semanas. Aguentou firme, não falou nada e teve sorte de ter sido dispensado.

Quando Igor avistou Silvério na casa em frente avisou rápido os demais companheiros do perigo que aquela figura representava.

Depois de alguns dias de discussões, resolveram que o melhor seria matar Silvério, decisão que aumentou ainda mais o pânico de Vera.

Vizinho ao aparelho existia uma vila residencial, com saída para uma outra rua. Resolveram que iriam matar Silvério, tarefa destinada a Carlão, que simularia uma fuga pela vila mas pularia o muro para dentro do aparelho.
E assim aconteceu. 

Em um dia, às cinco horas da manhã, Silvério levou um tiro certeiro na nuca e caiu. Carlão simulou a fuga e pulou para o aparelho, que naquele dia tinha apenas Paulo e Vera. O tumulto tomou conta da rua. Seu Pinto sabia que ali tinha coisa e grudou os olhos na polícia. Ninguém viu nada. No meio da perícia e de toda aquela gente, Paulo e Vera saíram de casa tranquilamente de carro, com Carlão escondido.

Passados alguns meses da morte de Silvério , o tempo fechou para os frequentadores do aparelho.

Em um tranquilo e melancólico domingo de zona norte, o aparelho foi cercado por "policiais" sem farda. O tiroteio foi intenso e os quatro que estavam dentro de casa resolveram se render, Paulo, Vera, Igor e Carlão.
Lucas , por sorte escapou. Tido como romântico pelos seus amigos de guerrilha, tinha se apaixonado por uma menina hippye, filha de um Almirante de linha dura membro da TFP e diretor do Lyons Club, e fora a um encontro com ela na Quinta da Boa Vista.
Logo em seguida, quando soube que a casa estava crivada de balas e os amigos presos, Lucas saiu do país, pois sabia que estava na mira.

Passadas quatro décadas daquele domingo no bairro do Lins de Vasconcelos, na zona norte do Rio de Janeiro, não se sabe o paradeiro de Paulo, Vera, Igor e Carlão.
Seus familiares tentam , até hoje, saber a verdade sobre o que aconteceu para que possam viver em paz, enterrar seus mortos, ou o que restou de seus corpos. O país precisa dessa verdade para limpar seu entulho autoritário que persiste ainda.

Lucas voltou depois do final da ditadura, mora na região serrana do Rio e é professor, foi salvo pela paixão.

Juliana, viúva de Silvério, o torturador assassinado, se agarrou a religião, frequentava a igreja do bairro todos os dias e acabou se apaixonando pelo padre, com quem se casou e tiveram cinco filhos.

Seu Pinto teve um fim trágico. Sentado na porta de sua casa viu duas pessoas na sua frente iniciar uma discussão que acabou em briga. Um dos envolvidos, viciado em corridas de cavalos, portava um grande binóculo que atirou no outro mas acabou acertando Seu Pinto. O impacto casou um ferimento na testa que evoluiu para uma septicemia, levando o aposentado a morte.

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