quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Diários de motocicleta

Diários de Motocicleta   


1 - O Médico Que Gostava de Gente


EXAME MÉDICO - arte PAPIRO


O pequeno relógio marcava quatro horas da tarde. Estava na estrada desde as seis da manhã, em um dia com chuva, de moderada a forte , sem nenhum período de estiagem. Mesmo com todos os cuidados e o aquecimento que as roupas e equipamentos de segurança proporcionam, além de um macacão impermeável para me proteger da chuva, meu corpo já dava pequenos sinais de hipotermia. A capa protetora para a chuva estava coberta com uma fina camada de água e poeira, assim como a viseira do capacete, o que já dificultava a visibilidade. Já em uma via secundária, de terra e esburacada onde já estava rodando por quarenta quilômetros, que na ocasião era lama, me aproximava de uma pequena cidade no litoral extremo sul do estado da Bahia. Dias como aquele, quando se chega ao destino, se tem uma sensação de alívio e vitória. Entrei na área central da cidade e parei em um estabelecimento comercial, onde um pequeno grupo de pessoas, que poderia ser uma multidão para o vazio da cidade , fazia suas compras. Estacionei a motocicleta, em uma proteção de marquise em frente ao estabelecimento e comecei todo o procedimento de retirada dos equipamentos de proteção. Reparei que todas as pessoas, ali presentes, interromperam suas atividades e passaram a me observar. Tinha me tornado uma atração de final de tarde com chuva em cidade do interior. Me dirigi para o interior do estabelecimento e abordei um senhor, encostado no balcão, perguntando se poderia me indicar a localização de uma pousada que tive informações em um guia de viagem. Outras pessoas próximas ouviram minha pergunta e logo um grupo se formou em volta de mim, onde , todos ,ao mesmo tempo, falavam sobre a pousada. A recepção me pareceu que aquelas pessoas eram amigáveis o que pude confirmar com os dias que permaneci na cidade. Vestido, ainda com uma jaqueta de couro abotoada até o pescoço e sentindo frio, em um local onde todas as pessoas estavam com bermudas e camisetas de manga curta, era natural que eu despertasse curiosidade. Pedi um copo de café quente com conhagc e um homem ,com o rosto rabiscado pelo sol e o mar, que bebia cachaça com outros logo emendou:

- é bom, esquenta, demonstrando entender exatamente o que se passava comigo.

- passei todo o dia na chuva, disse esfregando as mãos.

Bebi dois copos de café bem quente, o que aliviou a sensação de frio ,e voltei para a motocicleta em direção a pousada. Localizada na principal rua da cidade , tinha o mar a frente protegido por um paredão onde as pessoas sentavam para conversar ou pescar com linha . O dono, um senhor atarracado, branco , calvo, com a face misturando tonalidades de rosa e vermelho, um nariz bem vermelho, aparentando mais de sessenta anos, com um jaleco de médico, e óculos meia taça, me olhou por cima dos olhos e disse:

- sim, tem quarto disponível. Aliás, o senhor será o único hóspede. Essa época do ano o movimento é fraco. O senhor veio de motocicleta, me perguntou demonstrando surpresa pelo fato.

- sim, é um meio de transporte econômico e proporciona integração com o ambiente.

- interessante, comentou e com um sinal de braço sugeriu que o acompanhasse.

No dia seguinte, depois de um descanso merecido, acordei e fui tomar o café da manhã em companhia do dono da pousada, agora Dr. Mauro, médico ,clínico geral, casado e pai de dois adolescentes que passavam a maior parte dos dias deitados no paredão olhando pro céu , ou dormindo.

Uma mesa farta com mingau de sagu, bolo de aipim , manteiga líquida, queijo branco, mamão, leite, pão e café formavam os ingredientes para uma boa refeição e também uma boa conversa. Dr. Mauro não perdeu tempo. Mandou um interrogatório querendo saber tudo sobre minha vida, profissão , cidade onde residia, etc.. Médico,experiente, acostumado no trato com pessoas, também era uma pessoa bem humorada, o que fazia do café um encontro agradável. O tempo ainda estava de cara feia mas sem chover, o que me aninou a sair para explorar e conhecer o lugar. Dr. Mauro deu algumas dicas de locais que poderia visitar e ainda me convidou para o lanche da noite, o que aceitei e agradeci, já que a estadia incluía apenas , como refeição, o café da manhã. Liguei a motocicleta e ele logo emendou:

-interessante com você usa bem esse meio de transporte, disse com um ar enigmático.

Já era a terceira vez que ele repetia aquilo. Fiquei me perguntando o que ele queria saber , ou o que ele gostaria que eu falasse sobre o uso de motocicleta. Ao mesmo tempo, ele entrou em um fusquinha e saiu. Passei o dia explorando o lugar, conversando com pessoas ou simplesmente olhando o mar, o que aliás me chamou atenção pois o número de pessoas que ficavam sentadas no paredão olhando para o horizonte era significativo. E eram pessoas do lugar, moradores. Vez por outra, um falava alguma coisa , o outro ao lado respondia e o silêncio voltava a prevalecer. Os filhos de Dr. Mauro também estavam lá, deitados e dormindo. Um deles cruzou comigo, quando saia da pousada, me cumprimentou educadamente, e com uma expressão de cansaço se dirigiu para o paredão. A noite chegou e Dr. Mauro me chamou para o lanche. Sopa de legumes, o bolo do café da manhã, mingau, pão , banana frita e refresco de laranja. Resolvi conhecer um pouco sobre o Dr. e tomei a iniciativa das perguntas.

- o Sr. atende em consultório, perguntei enquanto retirava um fio de aipim que veio na colherada de sopa.

- aqui não tem consultório , meu jovem. Atendo aqui mesmo em casa ou na casa das pessoas

- e tem clientela numa cidade tão pequena ?

O homem me olhou nos olhos e disparou:

- o jovem parece que pensa que aqui é Rio de janeiro. A realidade aqui é bem diferente Uma cidade pequena, onde a maioria da população é paupérrima, que vive do que planta e colhe, além da pesca e do turismo apenas nos meses de verão. Ninguém aqui tem dinheiro o suficiente para pagar regularmente consultas médicas, comprar remédios. O pouco que se tem é para a comida , isso quando as pessoas tem. Caso contrário comem peixe no café da manhã, no almoço e no jantar.

- mas se não tem para pagar a consulta com é que que o doutor vive, com mulher o dois filhos.? Percebi que invadi e fui indelicado e me desculpei da pergunta.

- não tem que se desculpar, falou com firmeza e continuou. Sua curiosidade é normal. Você é engenheiro, tem boa formação, tem emprego, vive em uma grande cidade onde a realidade é bem diferente. Na sua cidade a prática da medicina é um negócio onde quem tem dinheiro paga por serviços médicos que são oferecidos como sendo os melhores. Aqui a prática médica é uma vocação. Aqui , para ser médico, em primeiro lugar o sujeito tem de gostar de gente, caso contrário vai ser médico no Rio ou em São Paulo. Não cobro por consultas e não deixo uma pessoa sem consulta , sempre que sou solicitado. Aqui meu jovem, o trabalho é coletivo. Me pagam como podem, com dinheiro, com comida, com peças de carro, com as rendas que as costureiras fazem, com ajuda de mão de obra na alta temporada tipo faxina , trabalho de construção civil, bombeiro hidráulico e até , como acontece, com um simples aperto de mão ou um abraço sincero de uma mãe que teve o filho medicado e cuidado por mim. Mas o que eu mais recebo é peixe. Peixe de tudo que é jeito , disse com um sorriso. Claro que necessito de mais recursos e a pousada é uma fonte importante na renda de minha família, principalmente na alta temporada pois fica quase que lotada por três meses o que dá para guardar um dinheirinho pra complementar o ano. É quando, também, a população da cidade consegue ganhar algum dinheiro pra não ter que viver o ano inteiro só comendo peixe.

- uma medicina social, comentei

O doutor me olhou de novo nos olhos e disse:

- uma medicina dentro das possibilidades do lugar, realista, voltada para cuidar de quem precisa, com aquilo que se tem disponível no lugar. Se não tem droga sintética , como acontece sempre, vamos de medicamentos fitoterápicos, que são eficazes em muitas situações e disponíveis na região. Se não tem bisturi usamos um canivete esterilizado ao fogo, Se não tem água destilada, vai água fervida. Se não tem soro, como por exemplo glicose, vai caldo de cana. Aqui o médico também é químico , botânico, psicólogo, engenheiro e por aí vai, meu jovem. Uma coisa é certa. Ninguém aqui fica sem atendimento médico, seja pobre ou rico. Tem gente aqui na cidade que tem dinheiro , são poucos, mas que se consultam comigo e pra eles também vale o mesmo. Eu não estabeleço um valor para o atendimento eles pagam o que consideram justo. Na maioria dos casos pagam bem , mas sabe como é que é , tem sempre uns mão de porco que adoram explorar os outros.

- isso me parece Marx, comentei provocando o Doutor.

Doutor Mauro, riu e falou

- se você entrar em uma discussão sobre trabalho, remuneração,exploração, independente se estiver acontecendo em um encontro de orientação comunista ou de orientação capitalista, você verá que as ideias de Marx estarão presentes, seja para apoiá-las ou para demonizá-las, ou mesmo que não se esteja discutindo sobre suas ideias, elas estarão lá, de alguma forma. Uma coisa , meu jovem, me parece clara. A exploração do homem pelo homem não é o caminho adequado para a evolução, nem as religiões também não o são e muito menos o capitalismo.

A conversa caminhava bem quando alguém bateu na porta. Um sujeito carregando uma criança que devia ter uns cinco anos, e que sangrava muito devido a um corte profundo no braço . Dr. Mauro se levantou , ignorou minha presença e nossa conversa e encaminhou o paciente para o quarto . Me levantei e fui andar um pouco pela noite. Sentei no paredão e fiquei a olhar o mar, na escuridão da noite escura, na cidade onde a vida não é um negócio.



2 -  A Aldeia Que Pensa No Futuro



PRIMAVERA - arte  PAPIRO


Cercado por canaviais a paisagem era monótona e cansativa. No sul do estado das Alagoas, a 2.000 km de casa, circulava por uma estrada secundária, de terra, irregular, onde predominavam buracos, depressões e muita costela. A motocicleta, de uso misto e com amortecedor central, avançava sem problemas pelo terreno , porém exigia uma condução que me mantinha quase de pé, apoiado nas pedaleiras laterais. O conjunto da suspensão amortecia bem os impactos do terreno, não causando nenhuma espécie de desconforto, o que fez com que aproveitasse para me divertir em uma condução mais esportiva, apesar de já ter passado a maior parte do dia na estrada. A estrada era traiçoeira, com muitas curvas que devido aos canaviais nas margens limitavam uma visão mais a frente , o que exigia uma velocidade com segurança e uma marcha que mantivesse o giro do motor mais alto, sempre pronto para mudanças de marchas e retomadas seguras. As derrapagens, sempre com a traseira da motocicleta, eram inevitáveis, devido ao estado da estrada e faziam parte da condução. Durante todo o dia já tinha vivenciado chuva , ventos fortes, frio e calor, mas por ali a temperatura era agradável e um sol de final de tarde dava um colorido vivo no lugar. De repente , ao contornar uma curva, me deparei com um cortejo de gado, conduzido por dois peões que tão logo me avistaram tomaram a posição no centro da pista, colocando todo o gado a direita deles e permitindo minha passagem sem causar estresse para os animais. Agradeci e fui retribuído enquanto observava o cortejo. Um touro, a frente, me lançou um olhar assustador enquanto as vaquinhas , atrás, tratavam de correr protegendo as crias. Lembrei-me de uma conversa com um peão que me disse que o gado passa o dia inteiro de cabeça baixo, comendo, mas quando levanta a cabeça e encara você é de meter medo. Já me aproximava da aldeia de pescadores e algumas casas, bem simples surgiam pelo caminho. Passei por aquilo que imaginei ser o centro da aldeia e parei na praia ao lado de uma pousada, onde um homem com calção e sem camisa fazia trabalho com madeira. Perguntei sobre a pousada e ele se apresentou como o dono. Era um sujeito sisudo, de poucas palavras e foi logo me perguntando se iria ficar. Olhei o mar a frente de uma beleza deslumbrante, ao redor, mas um pouco distante, outras edificações e várias canoas de pescadores na parte mais alta da praia. Um grupo de quatro pessoas , certamente estrangeiros por causa das roupas, ginga e aparência, caminhava alegremente pela praia. O valor da diária era generoso e convidativo, apesar de oferecer somente café da manhã e banho frio, pois a aldeia não tinha energia elétrica. Pedi para olhar o quarto no que fui prontamente atendido pelo dono, que não disse nada, apenas se levantou e sugeriu, com um gesto, que eu o acompanhasse. Já me dirigindo para o interior da pousada, pedi que esperasse pois iria acionar a trava contra roubo na motocicleta. Ele me olhou com um sorriso econômico e disse que não deveria me preocupar, pois ali ninguém rouba nada e nem mexe naquilo que não é seu. Uma parte de minhas neuroses urbanas se expressava naquele momento, no que foi prontamente percebida pelo dono da pousada. Notei que seu sotaque não era do lugar. Na entrada da pousada, que dava diretamente para a praia misturando-se com a areia, um grande quadro com a imagem de São Jorge chamava atenção . Tudo era bem simples mas muio bem cuidado e limpo. O quarto tinha banheiro e por cima da cama uma proteção para mosquitos, o que me deixou contente pois garantiria sono tranquilo. Não havia laje e percebi que existia uma abertura entre a alvenaria das paredes e a armação de madeira das telhas, o que facilitaria a entrada de aves, diurnas e noturnas. Um lampião de gás, estrategicamente posicionado na parede , próximo a porta do banheiro, garantia iluminação para os dois cômodos. Voltei para pegar a bagagem e me acomodei no lugar. Já noite, pensei em sair para fazer um lanche, mas e escuridão era total, apenas algumas luzes amarelas, trêmulas e tímidas indicavam a presença de pessoas. Voltei e encontrei o dono, na porta da pousada, serrando uma peça de madeira. Descobri que se chamava Jorge e perguntei sobre algum lugar para fazer uma refeição. Curto e grosso, me orientou sobre o que seria um bar, e que ainda naquela hora poderia encontrar uma refeição, tipo prato feito, muito apreciado pelos visitantes do local. Caso não quisesse ele disse que poderia jantar na pousada e foi logo dizendo que não servia refeição mas que faria uma exceção pois acabara de chegar , não conhecia o lugar e a noite já chegara. Mandou o preço, o cardápio único e perguntou se aceitava. Achei melhor aceitar e deixar para sair na luz do dia. O sono foi tranquilo e reparador e já alimentado com o café da manhã saí para curtir a beleza do lugar. Na porta encontrei Jorge, martelando um prego naquilo que seria uma cadeira.

- já na lida, provoquei perguntando

- o trabalho e a vida se confundem, fazem parte do dia a dia. Dormiu bem, perguntou seco como de costume.

- excelente, agora vou aproveitar para curtir o lugar.

- você vai gostar. A vida aqui é justa. Hoje a noite vai ter forró no quadrado em frente ao coreto.

O sotaque de Jorge era familiar. Arrisquei uma pergunta

- você é do Rio ?

- sim, estou aqui há quatro anos e pretendo morrer aqui.

- mudou de vida ?

Jorge parou o que fazia e me olhou nos olhos

- nasci no Rio e vivia no bairro do Flamengo. Sou engenheiro civil, tinha mulher e dois filhos que morreram em um acidente de carro que consegui sobreviver. Um maluco avançou um sinal acertou meu carro no lado em que estavam minha mulher e as meninas. Nós já tínhamos planos de viver em locais mais tranquilos e sem a neurose dos grandes centros urbanos, mas, infelizmente, elas não puderam realizar. Cheguei aqui, nunca tinha ouvido falar nesse lugar , mas gostei. Construí essa pousada e casei-me com uma moça aqui do lugar. Também pesco, aliás a vida no fundo mar é mais justa. Quando cheguei por aqui nem pousada existia, a minha foi a primeira e hoje já existem quatro. O Pierre, um francês, também chegou aqui e ficou. Fez uma pousada e divulga a aldeia no exterior, fazendo com que turistas estrangeiros venham para um lugar no Brasil que os brasileiros nem imaginam que existe.

- eu só cheguei aqui por conta de uma dica de um colega de trabalho, que é alemão, e que está trabalhando na empresa.

- pra você ver. Pierre e eu conversamos muito. Ele é um sujeito muito inteligente, arquiteto e preocupado com um possível crescimento da aldeia. Juntos , projetamos e construímos muitas casas por aqui, além do coreto da praça. Na nossa compreensão, que não é da maioria dos nativos, o planejamento das cidades deve começar desde seu estágio primitivo, como essa aldeia. Em um lugar no futuro isso será um Arraial, depois será uma Vila e então uma Cidade. Quando se transforma em cidade, a felicidade das pessoas também se transforma, quase sempre com impactos negativos. Preservar a cultura local, os valores e a qualidade vida sem abdicar dos avanços na tecnologia é o desafio. Por enquanto nem energia elétrica temos, deve chegar ainda este ano, dizem as autoridades. Não repetir os erros das cidades que crescem imitando as megacidades é o que tentamos passar para os nativos, que somente agora, com a presença de vocês turistas, começam a perceber o que é realidade da vida nos grandes centros. Até então tinham apenas a visão romântica, glamourosa e fantasiosa divulgada pelas tv's e pelo cinema. Com a presença de vocês eles perceberam, assustados, que vocês sequer olham para eles, que vivem com medo de serem roubados ,que se assustam até com mosquitos e que tem dificuldades de conviver com o silêncio, com o som da natureza.Ou seja, o individualismo do cidadão urbano assustou um povo que , para sobreviver, necessita da cooperação , como acontece na natureza. Esse convívio , se por um lado aquece a economia da aldeia, também favorece na conscientização dos nativos, naquilo que tentamos passar por não repetir os erros das grandes cidades e preservar a cultura local . Alguns já começam a perceber. Interrompi Jorge com uma pergunta de bate pronto.

- você já leu a Terceira Onda.

- sim acabei de ler, r espondeu com um olhar desconfiado tipo qual é a desse cara.

- não que o conteúdo do livro trate da essência de suas preocupações , mas os chalés eletrônicos, as cabanas tecnológicas de alguma forma estão inseridas nas questões que você abordou, não acha, perguntei.

- de certa forma, sim. Porém nossa preocupação central está no crescimento , nas pessoas. Viver e se desenvolver no local sem necessitar fugir para os grandes centros é o que tentamos mostrar para os nativos. Se aqui a pobreza é um problema sério, que limita a vida, e sequestra esperanças, o sonho de ir viver em um grande centro quase sempre se transforma em um pesadelo quando em contato com a realidade. Amontoados em cortiços e pendurados em encostas de morros nas favelas, muitos acabam na criminalidade e adquirem a consciência que a chamada cultura civilizacional dos grandes centros urbanos é apenas uma senzala high tech, que escraviza e exclui a maioria em benefício de poucos que lucram com a miséria, os senhores da casa grande tecnológica. A propósito, como está indo o Brizola lá no governo?

- vai bem, tentando mudar, como pode, esse quadro que você pintou.

- espero e torço pra que ele consiga, disse e se voltou para o trabalho posicionando um serrote para o uso.

- vou caminhar um pouco, disse

Depois de um bom tempo explorando o lugar fiquei curioso em saber mais das ações de Jorge para conduzir um crescimento equilibrado naquele lugar, ainda tão isolado do mundo. Havia um certa organização com conteúdos informativos para os turistas , nos idiomas inglês e francês, para minha surpresa. No comércio de artesanato local era possível encontrar folhetos , simples e rústicos, porém bem explicativos sobre a arte local, enfocando tradição, história, origem e, claro, os preços dos produtos. No restaurante, se é que se pode chamar assim o rústico bar mais frequentado do lugar, o top era um prato feito, que como disse Jorge e comprovado por mim, muito apreciado pelos visitantes. Havia opção de petiscos, sem grande variedade, e uma ou outra opção de refeição, sendo que todas as informações estavam disponíveis nos três idiomas. Depois de um dia relaxante saí na noite para o tão comentado baile de forró que aconteceria a partir das nove horas. O lugar, que na realidade era um retângulo, tinha em uma das laterias o pequeno coreto que certamente serviria como palco para diferentes eventos. O local para a dança era de terra batida, bem nivelada e ao ar livre. As pessoas já se aglomeravam no local, crianças, adultos, idosos, turistas brasileiros e estrangeiros, assim como vendedores de queijo no espeto, churrasco e bebidas. O clima era de tranquilidade. Jorge chegou com a mulher e sentou-se em um banco , na lateral da pista, fazendo de imediato uma análise na madeira. Aproximei-me e e, como de costume, estava de cara fechada olhando distante. Sua mulher, simpática, sugeriu que me aproximasse. Naquele instante, uma vitrola que funcionava com bateria, foi colocada por cima de um apoio de madeira.

- imaginei que teria um sanfoneiro, comentei

- hoje tem uma festa da família dele mais ali na roça e ele não vai poder chegar, disse a mulher de jorge.

Um sujeito botou um LP na vitrola e forró começou a rolar. Logo a pista de dança foi sendo tomada e a poeira, inevitavelmente, começava a subir. Jorge continuava mudo. Comentei com ele que o coreto era bem construído, no que ele se animou e começou a falar sobre a construção me garantindo que era bem seguro. Enquanto explicava os detalhes da construção uma menina, de mais ou menos vinte anos, se aproximou e deu dois beijos na mulher de Jorge, chamando-a de tia fazendo o mesmo depois com Jorge. Falante e desembaraçada, bem vestida com vestido, magra , aparentando ter um metro e setenta, bem morena mesclando traços negros e indígenas, posicionou-se ao lado dos tios.

- dance com ela, disse a mulher de Jorge falando comigo.

- vem minhoquinha, vamos dançar, disse para menina.

Pra que. A minhoquinha ficou uma fera e saiu esbravejando.

- e eu lá tenho cara de minhoca, homem. Fique sabendo que não sou magra , não. Todo mundo me acha bonita. E meu nome é Joana, viu ?

Jorge, para minha surpresa, caiu na gargalhada o que irritou ainda mais minhoquinha. Senti que mexi em desconforto de adolescente. Expliquei para Joana, que minhoquinha não tinha nada a ver com a aparência dela, mas sim pelo fato de ela ser do local, da região, da terra e que ela era uma menina muito elegante, o que de fato pensava. Jorge continuava rindo. A mulher de Jorge colocou panos quentes.

- deixe de bobagem, menina, vá dançar com ele, vá.

A essa altura minhoquinha estava com os braços cruzados e uma grande tromba. Estiquei a mão convidando-a para a dança , no que ela aceitou sem segurar minha mão e sem desfazer a tromba.

O local já estava sendo tomado por uma nuvem de poeira. Começamos a dançar e procurei ficar nos passos básicos do forró. Minhoquinha acompanhava sem problemas , todos os passos e meus movimentos, não esboçando em nenhum momento intenção de conduzir, o que achei ótimo. Também era leve como uma pena. Resolvi testar meu par e comecei a criar passos e movimentos, sem sair do ritmo da dança. Para minha surpresa minhoquinha seguia firme, sem nenhum erro, o que fez com que eu criasse cada vez mais, até que depois de criações bem sucedidas ela me olhou, já sem tromba e esboçando um sorriso e disse.

- eita homem danadinho pra dançar. Nem parece que é de fora.

- assim é mais divertido, desde que a dama acompanhe e você dança muito bem.

Minhoquinha ficou toda orgulhosa o que deixou o clima leve e mais divertido.

A poeira já estava incomodando e o disco era único, repetindo as doze músicas e eu já começava a decorar algumas. Chegou um momento que não se conseguia enxergar dois metros a frente, e a pista lotada. Até que um sujeito, aproveitando a troca de lado do LP, subiu no coreto a avisou que teríamos uma paradinha para jogar água na pista. Senti um alívio, pois estava encharcado de suor e poeira, porém para minha surpresa, o sujeito levou uma vaia gigantesca, inclusive de minhoquinha que ainda fez questão de colocar as duas mãos na boca enquanto vaiava. Ele insistiu dizendo que seria bem rápido, e todos, ainda vaiando saíram para descansar. Um grupo correu para o mar, o que achei uma boa ideia. Coloquei as sandálias ao lado de Jorge, e com camiseta e bermuda, dei um mergulho que mais se pareceu com um grande tchibum na água. Estava livre da poeira, porém repleto de sal. Perguntei por que minhoquinha não mergulhou e ela disparou:

- e eu lá vou ficar toda molhada desarrumada. Eu, hein.

Enquanto jogavam água na pista de dança, observei uma grande movimentação de cadeiras e bancos sendo levadas para o interior do coreto. Depois de posicionados, o mesmo sujeito pediu a atenção de todos e deu as novas. Nós vamos fazer um concurso de dança e os três primeiros colocados vão ganhar prêmios. Todo mundo do lugar aplaudiu e gritou. Depois informou a premiação:

- para o par que ficar em terceiro lugar cada um vai ganhar um copo de vidro pintado a mão, da venda de Zé Cavalcanti. Para o segundo lugar, cada um vai ganhar um cesto de vime, pequeno, pra colocar pão e fruta, tudo feito por Maria Bezerra. Para o primeiro lugar cada um do par vencedor vai ganhar uma PF de João do PF, com direito a refresco e sobremesa.

A alegria foi geral. O sujeito continuou.

- agora eu quero chamar os jurados pra sentar aqui no coreto.

A medida que as pessoas iam sendo chamadas, sentavam-se no coreto que ia ficando lotado. Jorge foi convidado. No momento em que se levantava disse pra ele:

- lembrando do que falamos hoje pela manhã, poderia dizer que trata-se de uma iniciativa do empresariado local em apoio as atividades culturais da região, preservando e divulgando a cultura, não é ?

- isso mesmo, disse Jorge com convicção se dirigindo para o coreto. Ainda olhou para trás, em minha direção e disse:

- isso é bom, isso é bom.

O sujeito pediu para que os pares se posicionassem na pista e ainda disse que na primeira eliminatória seriam escolhidos seis pares e depois de nova avaliação os três vencedores. Convidei minhoquinha e iniciamos a dança. Levaria um lado inteiro do LP até a escolha dos seis. Minhoquinha estava compenetrada , séria e fluindo como uma pena. Não dizia uma palavra. Ao final do lado do LP, o intervalo e o anúncio dos seis pares. O sujeito, do alto do coreto ia apontando para os pares escolhidos e ficamos entres os seis, para delírio de minhoquinha. A segunda etapa começou e resolvi dar o melhor de mim na dança no que fomos contemplados com a escolha em terceiro lugar. No momento em que foi anunciado, o sujeito pediu para que o par subisse no coreto, o que não me agradou pois o lugar estava entupido de pessoas e fiquei imaginando um desabamento. Enquanto, naquela fração de segundos pensava aquilo tudo, parado no meio da pista, minhoquinha me puxou pelo braço e disse:

- venha, homem, tá esperando o quê , meu deus.

Subi no coreto, com uma certa neurose, e com dificuldade fomos colocados na frente. Recebemos o prêmio, dois copos, de vidro, com capacidade de mais ou menos quatrocentos mililitros. A pintura era delicada e equilibrada e retratava o mar com canoas na praia. O empresário Zé Cavalcanti entregou o prêmio. Minhoquinha era uma alegria só, sorrindo sem parar e distribuindo acenos para todos na pista. Dei o meu copo pra ela que ficou feliz. Disse também que iria descer do coreto no que ela retrucou.

- o homem de deus, sossega quieto aí. Na hora de subir pra ganhar o prêmio, ficou parado, plantado, balançando igual bambu lá no meio. Agora, que é pra ficar aqui, quer sair. Não presta, não.

Resolvi não dar detalhes pra minhoquinha do motivo que me inclinava a querer sair do coreto. E ainda iriam subir mais quatro pessoas. Com dificuldade todos se espremeram no coreto e receberam os prêmios com direito a discursos. Terminada a premiação, o baile iria continuar e todos começar a descer

para minha felicidade. Foi quando Jorge, segurou no meu braço e começou a falar alguma coisa sobre incentivo as atividades culturais, fazendo com que ficássemos no coreto. Minhoquinha , que já estava saindo me viu parado lá dentro e disparou.

- agora que é pra sair, fica parado aí. O homem atentado, meu deus.

- estou conversando com seu tio. Vai, vai, vai criatura, logo a gente dança mais, despachei.

O baile continuou, com o mesmo disco e a mesma animação. Lá pelas tantas, um casal deu um esbarrão em minhoquinha que se desequilibrou. A mulher, uma francesa, disse.

- pardón, pardón.

- pas de problemes, disse minhoquinha

Fiquei surpreso e perguntei , se falava francês. Ela me explicou que Pierre e Jorge dão aulas de francês e inglês para algumas pessoas do lugar. No caso dela aprende o francês. Também disse que o objetivo é fazer com que as pessoas do lugar possam servir de guias para os turistas , em passeios ou mesmo no dia a dia na aldeia e com isso ganhar um dinheirinho. Perguntei onde Jorge arrumava tempo para dar aulas pois passa o dia inteiro com madeira e pregos e no fundo mar pescando, Disse que sempre se tem um tempo pra se fazer o que é importante. Aquelas aparentes inocência e ingenuidade das pessoas do lugar escondiam uma maturidade e responsabilidade, incomuns para uma cultura dominante de televisão que idiotiza e infantiliza as pessoas. As ideias de jorge começavam a se encaixar assim com seus passos para acompanhar o crescimento do lugar. De repente, a vitrola pifou, Talvez pela poeira, a agulha corria pelo disco e não conseguia reproduzir mais nada. O sujeito informou que, infelizmente, não poderia continuar, Mais vaias, isso já pelas duas da manhã no baile que começou as nove. Todos foram se dispersando e minhoquinha, junto com suas amigas correu em minha direção me convidando para uma sirizada, com o sanfoneiro que não veio, em lugar mais ou menso perto de onde estávamos. Não me aguentava mais em pé, agradeci mas disse que não iria, no que ela disparou.

- bem ouvi de pessoas que carioca é tudo preguiçoso, eita.

Com uma das mãos segurando os copos, acenou com a outra se despedindo e foi dançar na sirizada na casa do sanfoneiro. Caminhado lentamente, com as sandálias nas mãos, pela beira da praia,fui para a pousada. Na escuridão da noite e do lugar, ao som das ondas do mar, e com um céu salpicado de estrelas, compreendia a aldeia que pensa no futuro, ainda que , como dizia a canção " com a roupa encharcada e a alma repleta de chão"



3 -  A Tortuosa Estrada da Democracia



A ESTRADA - arte PAPIRO



A Aldeia tinha ficado para trás mas jamais sairá de minha memória. Em mais um dia de estrada, com sol e calor, já tinha cruzado o Rio São Francisco, todo o estado de Sergipe, o norte do estado da Bahia, contornado a cidade de Salvador, e avançava rumo a um arraial no sul da Bahia. Estava naquela hora do dia em que luz e sombra, noite e dia se confundem o que exige muita atenção pois as diferenças de luminosidade vão se misturando, a visão requer ajustes todo o tempo e o cansaço natural de um dia de viagem fica ainda mais acentuado. Já começava a programar uma parada para pernoite pois queria evitar a noite na estrada. Um vilarejo surgiu na frente e resolvi entrar e avaliar o lugar. Um lugar pobre, com características rurais e nenhum sinal de local para hospedagem. Abordei um homem , que me observava assustado enquanto falava, sobre um lugar para passar a noite. Indicou uma casa, próximo de onde estávamos mas se afastando da estrada. Cheguei no local e fui recebido por um homem, com um chapéu de palha, típico da roça que me apresentou o lugar. O quarto não tinha cama, apenas ganchos para colocar a rede. Avaliei e resolvi ficar, enquanto os quatro filhos do homem e sua mulher ficavam me observando sem parar. Retirei minha rede e coloquei no lugar. O quarto tinha duas janelas, sendo que a rede ficava bem próximo, quase encostando em uma delas, enquanto a outra ficava um pouco mais distante. Da janela próxima da rede se avistava uma pequena roça enquanto da outra, e próximo, descansavam duas vacas. Depois de um banho reparador deitei na rede. O balanço, associado a todos os elementos do lugar, fizeram como se estivesse nascendo nos braços da virgem Maria. O sono veio rápido. Dormi sem interrupções e acordei pela manhã bem cedo, assustado, com o mugido de uma vaca que pelo barulho parecia estar ao meu lado. Olhei ao lado e a cabeça do animal estava próximo da janela. Em fração de segundo fui me situando onde estava e relaxando. Espreguicei e me virei para o outro lado, onde a janela era bem próxima e dei de cara com um gato, a poucos centímetros de mim, deitado e me olhando. Levei um baita susto e o movimento brusco que fiz , fez com que o gato desse um pulo para fora. Até hoje não sei quem ficou mais assustado, se eu o gato. Depois dos sustos, arrumei toda e bagagem e levei para a cozinha onde teria um café. A família toda estava na cozinha e ficaram mudos e me observando quando entrei. A mesa foi uma surpresa. Café, leite, pão, bolo de fubá mamão, mingau de tapioca, manteiga, queijo e uma farofa de carne de sol e ovo. Sentei a mesa e o casal, juntos com os quatro filhos, todos de pé encostados na parede mudos me observavam. As crianças estavam alinhadas pela altura, do maior ao lado da mãe, para o menor na extremidade. Lembrei que já tinha visto aquela cena em algum filme, ou em vários, mas no momento não me lembrava de nenhum. Resolvi puxar uma conversa, elogiando o café e outras coisas do tipo, na tentativa de quebrar aquela situação. Foi quando um dos filhos, o mais novo que devia ter quatro anos, se separou do alinhamento familiar e foi mexer no meu capacete que estava junto com a bagagem. A mãe foi direta:

- larga isso, menino. Não sabe que não se mexe na coisa dos outros, disse com firmeza.

Aproveitei a deixa para mudar o clima e peguei o capacete, coloquei na minha cabeça e depois fiz o mesmo com o menino. O capacete dançava na cabeça do menino, o que foi motivo de risadas em toda a família. Logo todas as crianças resolveram experimentar o capacete e o clima ficou mais leve. Era natural aquela curiosidade, pois aquelas pessoas não costumavam receber pessoas de grandes cidades, e conhecer hábitos e costumes diferentes é normal. Enquanto comia e bebia de tudo que tinha na mesa, as crianças brincavam e a conversa com o casal, onde apenas o homem falava, fluía sem problemas. Bem alimentado fui acertar as contas. O valor cobrado foi irrisório, tanto que paguei um pouco mais o que deixou a família indisfarçavelmente feliz. A mulher ainda perguntou, já tomando a decisão, se queria levar um pedaço de bolo para comer durante a viagem, pois deve ter percebido que não economizei no bolo durante a refeição. Aceitei, claro. Cuidadosamente acondicionou uma fatia generosa, embrulhada em papel de pão, e me entregou , revelando satisfação. No momento da partida, parecia uma despedida de família, todos na porta, acenos e pedidos para que quando voltasse ao lugar fosse ao menos visitá-los. Peguei a estrada e com uma hora de viagem veio a chuva. O trecho era perigoso, com muitas curvas, acostamento pequeno ou inexistente e asfalto irregular na maior parte do percurso. Já na metade do dia, com chuva constante, em um trecho de curvas, tinha pela frente uma fila de seis caminhões. A estrada estava encharcada e para não aquaplanar seguia a trilha deixada pelos veículos, onde o asfalto tem menos água e sujeira. Fui me livrando dos caminhões, um por um, até chegar no último, seguindo a trilha das rodas esquerdas, próximo a faixa central. As vezes, com veículos em sentido contrário, tinha que abandonar a trilha para evitar uma proximidade maior no cruzamento e ir para o centro. E foi num momento desses atrás do caminhão e com um outro caminhão atrás de mim, que me deparei com um toco de madeira na estrada, na minha frente. Não podia frear e qualquer desvio mais brusco poderia levar a uma queda, o que seria trágico naquela situação. Em fração de segundo avaliei as opções e resolvi passar por cima do toco. Como estava com marcha reduzida, a 70 km por hora, acelerei e dei uma leve empinada na dianteira da motocicleta para facilitar a subida no toco, evitando derrapagem com a dianteira da motocicleta, e deixei todo o impacto e derrapagens para a traseira, sempre mais fácil de corrigir. E foi o que aconteceu. A roda dianteira passou com certa facilidade e o impacto na traseira fez com que a motocicleta dançasse acentuadamente apara a esquerda e, com a correção que fiz, dançasse para direita para finalmente se equilibrar. Olhei pelo retrovisor e o caminhão atrás tinha dado uma boa reduzida, aumentando a distância para mim, certamente impressionado com o que viu. Em situações de ultrapassagem de caminhões ou ônibus e ainda com pouca visibilidade por causa das condições da estrada, deve-se sempre seguir a trilha deixada pelos pneus, pois esses veículos evitam os objetos que aparecem na estrada, entretanto nem sempre é possível e a surpresa aparece no frente. Refeito do susto, senti saudades da vaca e do gato. Ultrapassei o último caminhão e encontrei a pista livre, mas depois de uma curva mais uma surpresa. Em uma pequena reta, avistei mais a frente, urubus se alimentando de uma animal morto no acostamento bem próximo a pista. Olhei na pista em sentido contrário e um ônibus certamente cruzaria comigo bem ao lado dos pássaros, atrás de mim, caminhões. Não podia desviar para a pista oposta e nem reduzir a velocidade e ainda teria que passar ao lado dos pássaros, pelo lado direito da pista, para evitar o deslocamento de ar causado pelo cruzamento com o ônibus, que sempre causa desequilíbrio em motocicletas. Tomei a decisão. Com os pés abaixei os apoios de pé para o carona, coloquei meus pés nesses apoios, procurei sentar bem atrás no banco e deitei o tronco por cima do tanque de combustível da motocicleta. Quase deitado, para minimizar a área de impacto no meu corpo, caso um pássaro se assustasse e resolvesse levantar voo na minha direção, engatei a sexta marcha e acelerei firme passando a uns 100-110 km por hora ao lado do animal morto e da passarada. O ônibus que vinha em sentido contrário, com previra, cruzou comigo no lugar. Passei sem problemas e os pássaros se assustaram, levantando voos em todas as direções. Era um dia de sustos e perigos. Logo em seguida mais um caminhão na minha frente, com carregamento de areia. A lona que cobria a areia, se soltou na parte de trás , e uma chuva de areia , junto com a água da cuva, veio pra cima de mim. Dava pra sentir no corpo, mesmo com todos os equipamentos de proteção, o impacto dos grãos de areia, além, claro, do barulho que faziam quando se chocavam contra o capacete. Água da chuva, chuva de areia e a nuvem de água e sujeira jogada pelas rodas do caminhão. Realmente não era o melhor dos cenários. Tratei de me livrar do caminhão e logo que respirei aliviado vejo, na minha frente, um caminhão gigantesco carregando toras de madeira que saiam dos limites da traseira do veículo, exigindo o uso de bandeiras sinalizadoras. Me veio a lembrança de uma conversa que tive com um caminhoneiro sobre os caminhões que transportavam blocos de pedra- mármore no sul do estado do Espírito Santo. As pedras eram colocadas nos caminhões, em carroceria plana e sem nenhuma fixação. Era comum ver , nas margens da estrada, na região do mármore, blocos de pedra no acostamento pois caíam dos caminhões. Como era antieconômico aproveitar os blocos de pedras,uma vez que seriam necessários guindastes para removê-los, esses ficavam abandonados na estrada. Como o tempo, e o crescente número de blocos que voavam de caminhões, criaram-se empresas especializadas em recuperá-los nas estradas. Olhei para as toras de madeira na minha frente e tratei de ultrapassar aquele caminhão. Já dava sinais de paranoia e então resolvi parar para descansar, abastecer a motocicleta e fazer um lanche com o generoso pedaço de bolo de fubá. Parei logo em seguida em um posto de combustível bem movimentado. Fiz uma revisão na motocicleta por conta do impacto com a madeira e tratei de tirar toda a lama, já que é um peso desnecessário para carregar. Enquanto me preparava para o lanche, próximo a uma lanchonete, um sujeito branco, com uma tonalidade rósea e cabelos aloirados se aproximou e disse:

- passaste um sufoco, tchê

Olhei para o sujeito, tentando entender e ele completou:

- estava atrás de ti, no caminhão, e vi quando derrapaste. Barbaridade, quase caíste.

Olhei para o caminhão que tinha placa do interior do Rio Grande do Sul. A curiosidade de caminhoneiros com motociclistas sempre se manifestou nas viagens. Conduzindo veículos gigantescos e pesados, a motocicleta se apresenta como algo frágil.

- percebi quando você reduziu, disse

- foi o susto.O trecho agora a estrada é boa, asfalto liso. É tudo chapadão, disse se despedindo com uma garrafa térmica em uma das mãos.

Lembrei que na ida o trecho próximo era de fato bem melhor, com asfalto liso, curvas com boa visibilidade. Talvez tudo isso , ou parte disso , seja o significado de chapadão.

Voltei para a estrada e a viagem seguia tranquila, a chuva tinha passado e sol voltava com força. Já estava próximo de uma cidade , no sul da Bahia, onde o Brasil começou a ser saqueado há mais ou menos quinhentos anos. Ainda hoje, as principais elites econômicas do país se mantem na dianteira dos saques. Já ao anoitecer cheguei em um Arraial. Enquanto acertava os detalhes de hospedagem na recepção de uma pousada, uma hóspede, com forte sotaque paulistano, interrompeu minha conversa com o atendente dizendo que tinha aprendido a subir em coqueiros e aproveitara para ver o por do sol do alto de um coqueiro na praia. Normal, estava no Arraial. Depois de um banho, já noite , resolvi sair para jantar no restaurante do Marcão, que como tinha me informado o atendente , continuava firme e forte no lugar. Conheci Marcão em outra passagem pelo Arraial anos atrás. Mineiro , durante o período da ditadura militar foi preso político em uma prisão militar no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Logo foi desovado do país e viveu nove anos no exílio, retornando em 1979. Sua mulher, também ativista política, morreu nas garras da ditadura em um porão do horror , na cidade de São Paulo. Quando retornou, Marcão foi viver no arraial e abriu um restaurante, aproveitando a experiência de nove anos como garçom no período que viveu na França. Caminhando em direção ao restaurante me deparo com um show de dança e música em uma rua do lugar. Um violino, uma viola caipira, um violão e um atabaque formavam o grupo musical que executava uma música que me parecia ser de Bach. A coreografia da dança tinha doze pessoas. Dois casais, vestidos com roupa de gala, terno, gravata e vestido longo, dançavam, ao ritmo de um ou mais de um dos instrumentos, uma dança indígena com direito a fila indiana, batida forte dos pés e reunião circular. Outros dois casais, vestidos de índios, dançavam algo parecido com valsa ou dança medieval. Os outros dois, vestidos com roupas do tempo das cavernas, dançavam ao ritmo de pop music contemporânea. Impressionava o fato de que todos os grupos, mesmo com expressões de dança distintas, seguiam o ritmo da música que era executada. Normal, estava no Arraial. Seguindo para o restaurante passo por uma casa onde no jardim acontecia uma festa. O som da vitrola reproduzia o canto no idioma espanhol ao ritmo de merengue, enquanto as pessoas na festa dançavam lambada. Normal, estava no Arraial. Chego ao restaurante sou recebido com alegria por Marcão;

- surpresa boa, sô. Senta aí, disse puxando um banco próximo ao balcão .

O restaurante tinha crescido e estava menos rústico. Comentei e também disse que estava morto de fome.

- vou dizer uma coisa procê. Tem um arroz com polvo que tá bom demais, sô. Leva umas salsazinha e óleo de coco e ainda é servido dentro do coco. Vai ?

- claro. Aqui, não tem uma boa pra incrementar o apetite ?

Marcão saiu e voltou com uma garrafa cuidadosamente nos braços. Se aproximou de mim, por trás do balcão, olhou para os lados vendo se alguém estava por perto, segurou meu braço, e próximo de meu ouvido criando um clima como se fosse revelar o segredo da expressão da Monalisa, disse:

- essa é especial. Um amigo de BH manda pra mim. Vem de um engenho da roça. Vou colocar só um pouquinho procê provar. Em um copo de aperitivo, Marcão encheu pela metade e me serviu.

- Hummm, boa demais. Mas não é marvada , não, não é ?

- num disse procê ? Que marvada o quê, sô

A cachaça era de tonalidade amarela, encorpada, aveludada e sabor macio e suave. Marcão encheu o copo e saiu cuidadosamente levando a garrafa nos braços como se fosse um filho. Voltou com a refeição, como dissera em uma metade de coco, cortado por baixo para que pudesse ficar fixo

no balcão.

Logo nas primeiras garfadas não resisti e disse:

- esse trem tá bom demais, sô. Mas essa porçãozinha aqui não vai nem revestir as paredes, quanto mais preencher o vazio.

- repete quantas vezes quiser, uái.

Comentei sobre a evolução do restaurante e ele disparou.

- isso aqui tá mudando aos poucos. Há quatro anos, quando cheguei, só vinha pra cá o pessoal das mochilas. Hoje já tem hotel, resort e vou acompanhando . Minha freguesia também tem mudado. Isso vai virar um balneário de pessoal com dinheiro.

- e isso é bom, perguntei enquanto pedia uma segunda refeição.

- depende. Quem veio pra cá com aquela visão alternativa, já era. Pra mim tá bom. Se sabe, aqui tem de tudo. Mas me diz uma coisa. Foi no comício ?

- não só no comício com participei de todos os eventos na cidade :passeatas, pequenos comícios ,festas. Se viu pela tv. perguntei enquanto pedia mais uma refeição.

- que tv o quê, sô. Nos fomos pra lá, em quatro num carro. Assisti lá frente, e ocê ?

- fiquei no meio da presidente vargas, na altura da rua Uruguaiana.

- Mas foi bonito demais. Aquele povão todo na rua, unido em um ideal, gritando por democracia, liberdade, eleições diretas. Não tem nada igual a força do povo.

- mas a emenda não passou, né. perguntei e pedi a quarta refeição.

-não passou mas os milicos vão ter que sair. Ficaram enfraquecidos. Olha aqui, vou dizer uma coisa procê. A gente aqui nas conversas , chegamos a conclusão que deve ter havido um acordo. A emenda não passa , já os milicos tem que largar o osso. Acredito que em quatro anos a gente vai votar prá presidente. Já é o início, mas ainda é pouco. Viu o que tentaram fazer com o Brizola na eleição de 82.

- aquilo foi armação, disse e pedi a quinta refeição.

- e que armação , sô. Foram os milicos a tal da proconsult e grande parte da imprensa, com tv globo na frente. Esses caras da tv globo não aprendem. Apoiaram o golpe de 64, se enriqueceram na ditadura e ainda queriam melar a eleição do Briza. São golpistas, entreguistas dos americanos, não respeitam a vontade popular, tentam alterar o resultado das urnas, derrubar governos democraticamente eleitos, perseguir os políticos que o povo adora. Lembra do Getúlio ? Perseguiram tanto que o homem se matou. Aí o povo foi pra rua e tentou invadir a rádio globo. Tiveram que sair do ar. Eles que continuem a desafiar o povo que o pessoal invade aquilo e acaba com eles. Eles acham que mandam na vontade popular.

- deram uma de mágico. esconderam o movimento das diretas já. disse e pedi a sexta refeição.

- eles acham que a realidade é aquilo que eles criam, noticiam e priorizam. Como falei procê, votar pra presidente é só começo. Tem muita coisa pra fazer. Já estamos com quase 21 anos de ditadura, e as coisas não vão mudar de uma hora pra outra só tirando os milicos do poder. Toda uma geração, uma cultura , foi formada no autoritarismo ,na ditadura. Entra um presidente mas o autoritarismo continua entranhado no estado, nas elites entreguistas. A democracia é muito, mas muito mais que um simples voto. É a participação popular em todas as esferas do poder, é o equilíbrio na produção , é o equilíbrio na produção de informação e cultura,é a garantia dos direitos básicos do povo, é o povo no poder. Ainda vai levar muito tempo, mas a gente consegue. Vai mais ?

- estou satisfeito.



4 - A Ressurreição de Madalena


UNIVERSO - arte PAPIRO


Depois de um dia em uma cidade da região dos lagos no estado do Rio de Janeiro, saí bem cedo, na manhã de uma sábado , com destino ao Rio de Janeiro. Na segunda-feira próxima retornaria ao trabalho. Fazia frio e uma chuva fina me acompanhou durante as duas horas de viagem. Chegando em casa, ao estacionar a motocicleta na garagem, me lembrei do lugar mais distante que tinha alcançado naqueles dias de férias. Por algum tempo, enquanto desfazia a bagagem, passava um filme da viagem. Foi quando o telefone tocou. Era Madalena, amiga que vive na cidade de São Paulo de onde me ligava. Estava me convidando para passar o final de semana em sua casa, em São Paulo, como já fizera de outras vezes. Expliquei que tinha acabado de chegar de uma longa viagem, mas que talvez fosse uma boa ideia. Estava se aproximando das 10 horas e então combinei que pegaria a ponte aérea das 13 horas, no que ela disse que me aguardaria no aeroporto de Congonhas. Disse para que fosse bem agasalhado pois o dia era típico de São Paulo, com muito frio e chuva fina. Desliguei o telefone, e ainda repleto de estrada comecei a reunir uma nova bagagem. Madalena é uma pessoa especial. Filha única, de uma família de imigrantes italianos, é herdeira de um grupo de industrias do setor metal mecânico localizadas na grande São Paulo. Formada em Administração de Empresas, com mestrado em uma universidade dos EUA, conduzia os negócios da família ao lado do pai, um sujeito conservador e autoritário, tanto na condução dos negócios quanto na relação com a filha. Conheci Madalena, já há quase três anos, por ocasião de uma auditoria que conduzi em uma das indústrias do grupo. Na ocasião, ela era , como ainda é hoje, responsável pela implementação e condução de um programa de gestão da qualidade nas empresas. Na auditoria me chamou a atenção o fato de que aquela mulher, mesmo com toda a resistência do pai, implantava com competência e de forma cuidadosa e criteriosa uma cultura democrática e participativa nas empresas. Para mim, que já conhecera dezenas de empresas, a visão de Madalena era algo raro no setor, entretanto coincidia com a compreensão que tinha sobre uma cultura para a Qualidade nas empresas. O padrão dominante nas indústrias, no tocante a uma cultura para a Qualidade, era meramente cartorial, objetivando a certificação que garantiria o trânsito livre nas relações comerciais empresa-empresa, sendo a Qualidade apenas um discurso da moda, desprovido de profundidade e até mesmo para muitos empresários, algo ameaçador e perturbador da ordem nas empresas. Assim como eu, Madalena não via dessa forma. Acreditava que democratizando a gestão e dando voz aos empregados, que ela tratava de fato como colaboradores, poderia ter sucesso na modificação de uma cultura autoritária vertical para uma cultura horizontal participativa. Mesmo sendo uma pessoa endinheirada, sem qualquer tipo de preocupação financeira, não se identificava com os valores predominantes nas elites econômicas do país. Eleitora do Partido dos Trabalhadores, defensora de um socialismo democrático, sua opção política produzia arrepios no pai e nos amigos milicos do velho naqueles tempos de final da ditadura militar. Entretanto a sua competência na condução dos negócios da família , a satisfação dos acionistas, o respeito e adoração que recebia de seus colaboradores, intimidavam, mas não eliminavam nunca, os arrepios do pai. Nesse eterno conflito em que a relação pai- filha e chefe -subordinada se misturavam no dia-a dia da empresa, Madalena conseguia equilibrar e manter uma relativa distância sobre o autoritarismo do pai, conduzindo o programa com uma determinação exemplar. Nossa afinidade se manifestou logo na primeira vez em que auditei a empresa, durante três dias. A partir dali mantivemos contatos frequentes sobre congressos, seminários , mesas redondas de interesse comum. Trocávamos, também, informações sobre livros e novas tendências na administração de empresas em que a visão alternativa emergente predominava. Apesar de seus trinta e poucos anos era dona de uma cultura vastíssima. Com o tempo nossa amizade foi ganhando novas cores e como meu trabalho exigia deslocamentos constantes para a cidade de São Paulo, nossos encontros se tornaram cada vez mais frequentes. Apaixonada pelas artes e totalmente alinhada com a visão alternativa emergente, acreditava que aquele era um caminho sem volta e que o tempo seria o revelador daquela nova compreensão da realidade. Com uma aparência simples, próximo ao casual, circulava com desenvoltura em todas as situações. Avessa ao exibicionismo e a ostentação dos endinheirados, pois como ela mesmo dizia " já nasci rica em ambiente de dinheiro e cultura" tinha como marca o bem viver e o bom gosto. Foi com Madalena que conheci uma cidade de São Paulo que não aparece na tv. Uma cidade para todos, pobres e ricos . A São Paulo de Madalena não tinha pobreza nem riqueza extremas, fosse na escolha de um restaurante, numa exposição de arte, em um show musical. Uma cidade fascinante que transbordava cultura, bom gosto e até mesmo um toque artesanal, em todas os locais por onde circulávamos. Morava só, em uma confortável cobertura em um prédio próximo ao Parque do Ibirapuera, onde sempre podia ser vista nas caminhadas ou mesmo em reuniões de trabalho com colaboradores, para desespero de alguns poucos engravatados e de algumas de saias justas. Principal executiva de um grupo empresarial onde a cultura é predominantemente machista em um universo de arquétipos masculinos, Madalena não se rendia e com rara habilidade fazia valer suas ideias, exercitando tais arquétipos através de um filtro feminino, sem abandonar suas características. Fora do trabalho levava uma vida em defesa de seus ideais humanistas e socialistas, o que, como ela mesmo dizia, dava um leve caráter esquizofrênico na totalidade de sua vida. Aspecto esse que também se fazia presente em nossa amizade, pois assim como ela, trabalhava em uma empresa que construía uma central nuclear mas era contrário ao uso da energia nuclear. Sua casa dizia muito de sua personalidade. Apesar de morar em uma confortável cobertura, as dimensões do imóvel eram modestas para quem dispunha de tantos recursos. A decoração combinava o pós moderno com o antigo, tanto nas peças do mobiliário como nas obras de arte, valorizando em todos os casos a originalidade e a produção limitada. A primeira vista qualquer pessoa teria dificuldade de entender o ambiente entretanto, com um pouco tempo ficava marcante que o aspecto impessoal e padronizado não se manifestava naquele ambiente. Tudo foi cuidadosamente elaborado, funcional e de bom gosto que no conjunto produziam uma harmonia, as vezes cult, outras non sense e até um pouco brega, mas que transbordava arte. Cheguei no aeroporto Santos Dumont ainda um tanto tonto de tanta estrada, as vezes me questionando como poderia estar embarcando para São Paulo, para passar um pouco mais de 24 horas naquela cidade. Comprei o bilhete e telefonei para Madalena confirmando o horário de embarque. Embarquei no barulhento confortável electra e decolamos. A viagem , com o tempo chuvoso em todo o percurso, não foi muito diferente dos últimos dias, até mesmo no tocante aos trancos e solavancos devido aos buracos da estrada. Felizmente o electra pousou em Congonhas e depois de fazer seu habitual estardalhaço no momento de reversão dos motores, parou na pista para desembarque. O frio estava de rachar, o céu cinzento e uma chuva bem fina. Estava em São Paulo. Cruzei o setor de desembarque para o saguão do aeroporto e avistei Madalena. Quando me viu abriu um belo sorriso. Enfiada em uma calça jeans e cheia de agasalhos e casacos deixava a mostra a pele bem clara de seu rosto com seus cabelos castanhos, soltos, a altura dos ombros. Estava um pouco mais magra do que da última vez que nos encontramos, o que certamente a deixa mais feliz pois vive brigando com a balança por causa de sua inclinação incontrolável pela culinária italiana.

- que cor bonita, disse ela se referindo ao meu bronzeado

- mudei de emprego. agora trabalho como salva-vidas. disse em meio a um abraço.

Caminhamos para o estacionamento do aeroporto trocando elogios sinceros a cerca de nossas aparências, o que não poderia ser diferente em se tratando de Madalena. Já em sua casa, saboreando um providencial chá, bem quente, disse que tinha muitas novidades para me contar. Posicionou-se no sofá, cruzou as pernas, inclinou-se para o meu lado e começou a falar.

- você não imagina os resultados que estamos alcançando com as equipes. De início foi uma tremenda dificuldade para dar início ao processo. Primeiro vencer as resistências de papai, depois encontrar um horário para que as equipes pudessem fazer as reuniões. Não tinha como pedir aos colaboradores para que ficassem depois do horário de expediente na empresa e também não seria produtivo depois de um dia de trabalho discutir assuntos relativos ao trabalho. Durante o horário do expediente seria o ideal, mas se o fizesse , papai invadiria a fábrica. Consegui que os grupos passassem a funcionar antes do início da jornada de trabalho.

- de madrugada, Madalena ?

- não é bem assim. A jornada inicia às 07:15 e começamos as reuniões ás 06:15. Achei por bem fazer as reuniões em um ambiente de café da manhã. Você sabe, antes de entrar no trabalho todos tem o café da manhã na empresa e o que fiz foi transformar o café em algo mais prolongado e farto. O pessoal aprovou e os grupos funcionam bem.

- e todos os colaboradores gostaram da ideia de discutir questões relativas ao trabalho ?

- tive algumas surpresas nesse aspecto. Durante o estágio preparatório, através de consultas e palestras que fiz com todos, notei que um número significativo de colaboradores, longe de ser a maioria mas mesmo assim significativo, não se sente bem em um ambiente participativo, preferindo a postura passiva e cômoda de receber ordens e executar.

- não correm risco em se expor, não é isso ?

- um pouco disso e outras questões até mesmo de foro íntimo, mas o elemento predominante é a identificação , ou a falta de identificação, com o trabalho fazendo com que essas pessoas minimizem suas responsabilidades apenas para aquilo que executam. Qualquer ordem que recebam, eles executam e caso venha a ocorrer um erro , não na execução mas no conceito daquilo que foi pedido e executado, eles de imediato dizem estar cumprindo ordens.

- é como disse , não querem se expor.

- em parte, mas o principal elemento que move esse tipo de comportamento é a falta de identificação com a empresa e com o trabalho, e em segundo lugar os conflitos com os supervisores ou gerentes imediatos. E foi aí que consegui reverter boa parte dessa resistência colocando operários e gerentes nos grupos discutindo assuntos relativos ao trabalho sem que os aspectos de hierarquia prevalecessem na discussões. Foi ótimo.

- e os gerentes e supervisores, como se comportaram ?

- então, de início, nas primeiras reuniões, ainda tentavam impor a condição de superiores perante os operários, mas com as intervenções dos moderadores de grupos essa postura praticamente desapareceu . E a partir daí os resultados tem sido fantásticos. Apenas um exemplo, na linha de fabricação de fixadores para trilhos e dormentes, tivemos um ganho de produtividade de 20%, uma redução fantástica do índice de acidentes, um índice de sucata perto de zero, e uma melhor maneira de executar as tarefas. São impressionantes a qualidade e profundidade das sugestões apresentadas pelos colaboradores. No caso dessa equipe, que é a mais antiga, as reuniões estão evoluindo até mesmo para o crescimento pessoal dos envolvidos .Uma vez esgotado os assuntos mais técnicos são abordados aspectos do relacionamento interpessoal, tanto entre colaboradores como entre colaboradores e supervisores e gerentes. Em alguns casos , até mesmo as relações familiares crescem e evoluem, pois são os motivadores e significantes para determinados tipos de comportamento no trabalho. É uma revolução.

- e seu pai, o que acha disso tudo ?

- então, como estamos tendo excelentes resultados , e para ele só interessa o resultado financeiro, ele não reprova , mas também não diz que aprova. Você sabe, ele fica dizendo que minhas ideias são de comunista, que isso é coisa de socialista...

- seu pai lê o globo ?

- não. lê outros jornais daqui, mas assiste todos os telejornais da tv globo.

- está explicado.

- então, as equipes estão crescendo, os colaboradores mais satisfeitos, a participação na tomada de decisões ainda que apenas nos aspectos produtivos operacionais se faz naturalmente.

- mas tenho uma dúvida. Com a participação de todos nas tomadas de decisões o processo decisório não fica mais lento ?

- com certeza. Democracia participativa exige muita discussão, mas aí entra a importância dos moderadores , dos gerentes e dos supervisores , para evitar que se tergiverse ou que se volte para um ponto que já foi decidido. Eles foram treinados para esses aspectos. Outro dado importante é que a qualidade das decisões melhorou muito, fazendo com que sejam duradouras as ações decorrentes de decisões tomadas neste ambiente. Aquilo que foi decidido raramente sofre modificação com o tempo, o que não acontecia quando a decisão era de uma única pessoa, ou de um único degrau da hierarquia. Visões diferentes enriquecem o processo decisório e , com o passar do tempo também produz um ganho na produtividade. Então, aquilo que parece lento no início, e de fato é mais lento, produz um resultado melhor no curto prazo devido a solidez, precisão e completeza do processo decisório. Seria tão bom se toda a empresa , em todos os processos, se envolvesse nesse ambiente. Seria melhor ainda, se todos os governos, municipais, estaduais e federal exercitassem a participação popular nas tomadas de decisões. Isso é a verdadeira democracia, o verdadeiro e mais autêntico poder, pois emana do povo e por ele também é exercido. Infelizmente ainda estamos em uma ditadura, agonizante, mas ainda estamos longe do povo no poder. Então, estou satisfeita e acredito que iremos evoluir muito mais. Como já disse pra você, esse é um caminho sem volta. Mas tem outras coisa que quero dividir com você. Recentemente estive nos EUA para fóruns e palestras. Adoro esses encontros , servem como uma ressurreição , um renascimento para mim .Primeiro estive com o pessoal de um fórum econômico e de negócios e depois em um outro encontro com pensadores em uma universidade. Foi fantástico, você não imagina. O pessoal do fórum econômico alertou, como já vinha fazendo em outras ocasiões, para o processo em curso de desregulamentação da economia mundial nesta década.

- exacerbação de práticas mercadológicas ?

- pode ser mas o principal é que tudo isso eles já tinham alertado na última reunião e você sabe, aqui na ditadura agonizante não temos a melhor ideia do vem pela frente, mesmo sendo um governo civil com acreditamos que vai acontecer. Por isso que tenho que viajar com frequência para os fóruns para conhecer os rumos e tendências.

- mas tem alguma coisa que não entendo. Você está empolgada com democracia participativa, com os resultados que consegue na empresa, fala que é um caminho sem volta, que é a emergência de uma nova cultura etc... mas o que que você aponta como tendência para o futuro, fruto de suas participações nos fóruns, é exatamente o oposto. Com é que fica ?

- então, a visão do fórum econômico está correta, no tocante aos rumos da economia , mas não tem profundidade como dizem os pensadores dos fóruns acadêmicos. Segundo os pensadores da academia o mundo nas próximas duas décadas, seguindo a tendência em curso,produzirá uma riqueza jamais vista em outras épocas, mas com um custo social e ambiental devastador. As massas monetárias serão gigantescas mas cada vez mais poucos irão desfrutar da riqueza. A exclusão e a pobreza irão aumentar. Eles acreditam que esse processo em curso, que aqui no Brasil ainda nem se sonha sobre ele, não pode se sustentar por mais de duas décadas e, que certamente todas as ideias bloqueadas há poucos anos atrás vão voltar , mas com novas maquiagens e embalagens. Você sabe, aquilo que emerge, como estrutura de conceitos científicos solapa grande parte dos conceitos dominantes. A própria compreensão da natureza se modifica, onde o feminino prevalece sobre o masculino.

- que história é essa , Madalena ?

- o conceito de natureza passa a ser cooperativo, bem diferente de tudo que se sabe e vivencia no dias atuais.

- e o que isso tem a ver com o feminino ?

- então, quando me refiro ao feminino falo de arquétipos, aliás já conversamos sobre isso. Essa nova versão do capitalismo , e até mesmo o capitalismo, é baseado na competição, vai ser um salve-se quem puder. A competição, em todos os aspectos, é uma expressão masculina, assim como a liderança, a chefia , o comando, independente de quem esteja envolvido com esses processos , homem ou mulher. No momento em que estou no comando de minhas empresas, dirigindo, estou exercendo arquétipos masculinos de direção, sem que para isso eu tenha que ser igual aos homens nessas expressões. Se me comportasse como um homem se comporta nessas questões, estaria em desvantagem pois sendo mulher os homens fariam melhor. Ao comandar, mesmo sendo um arquétipo masculino, o faço através de meu filtro feminino. E essa emergência do feminino vem desde as novas estruturas do conhecimento científico, obviamente até em uma nova forma de poder.

- você fala de uma emergência do feminino. Não consigo enxergar nada disso a minha volta.

- e nem pode. Falo de uma cultura que ainda não nasceu, mas que é um caminho sem volta e que em pouco tempo será dominante.

- agora também é profeta ?

- você sabe que não dou a mínima para essas bobagens de profecias. Falo de pensadores, acadêmicos que trabalham com cenários e modelos. Profecia deixo para aquela turma daquela palestra que fomos, lembra?

- aqueles teus amigos etruscos ?

- não é pelo fato que sejam italianos e místicos que são etruscos.

- mas você me mostrou uma representação , em uma pintura, que seria de figuras etruscas.

- sim. eles são depositários de uma parte da cultura etrusca, mas não seguem nenhuma prática daquele povo. Eles é que gostam de profecias. Lembra que naquela palestra eles falaram que o ano 2000 viria a emergência do feminino ?

- Lembro e acho que essa história do feminino emergente ainda vai dar muito pano pra manga.

- hummmmm, isso está me cheirando a machismo. Parece até meu pai ?

- me comparando com teu pai. Que bandeira.

- deixa de bobagem. você é meio mandão, mas não tem nada de papai. Então. Os movimentos de emancipação e libertação da mulher caminham nesse sentido, de uma maior participação do feminino. Vocês homens, vão ter que reaprender a serem homens.

- que papo é esse. colocando a gente na fita, dizendo que tem que reaprender. Disse com um expressão saindo de banda.

- vocês não sabem fazer nada, ou quase nada. Foram condicionados, ao longo do tempo, a matar um leão por dia para sustentar a família. Fora isso, necessitam de cuidados das mães e das mulheres. Com a emancipação da mulher novos desafios se apresentam para o homem, e a maioria em expressões de arquétipos femininos.

você não fala essas coisas para os seus funcionários, fala ? Se falar vão meter você numa laminadora e você vai virar trilho.

- claro que não, isso eu converso com pessoas próximas. É ai que eu digo que é um caminho sem volta.

- mas essa história do feminino vem de longa data. Se a tua tese de emergência do feminino estiver correta , como é que fica a religião. Já tem toda essa polêmica sobre a história da tua homônima, que foi uma história plantada de prostituta etc e tal. E ai, com fica, vai ser uma confusão dos diabos, ou melhor, dos santos. São quase dois mil anos do masculino.

- Isso é uma outra história, você está misturando as coisas. Tudo bem que que pode ter respingos, mas não entro nessa esfera. De fato , sei, que o que emerge é feminino. Essas confusões com Madalena não me interessam. Então, me diga o que você acha de tudo isso .

- não dá. é muita coisa, muito conceito. você passa semanas com feras do pensamento científico, político, econômico e filosófico e quer que eu tenho uma opinião sobre tudo isso.Vou precisar de um bom tempo para analisar, refletir e ter uma opinião própria. E ainda estou chegando de viagem, onde vivi experiências impactantes...

- Tudo bem, então me conta sobre sua viagem. disse e já se posicionou no sofá para ouvir

- não posso.

- como ? Não pode ?

- ainda não terminou.












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