segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Rio Zona Norte 6 - Pato Preto

  

Rio Zona Norte - 6      Pato Preto


O ano era de 1962 e vivia-se uma alegria incontida pela conquista do bi campeonato mundial de futebol no Chile. Na cidade do Rio de Janeiro, no bairro do Engenho Novo, Igor saía de casa para fazer compras no centro da cidade. Com 16 anos, classe média, era tido como o mais bem sucedido financeiramente da turma de adolescentes do bairro. Filho de pais comunistas, era , naquela idade,um entusiasta da revolução cubana. Até mesmo nas brincadeiras de rua, Igor criou um paredón em que simulava fuzilamento daqueles que erravam ou perdiam a brincadeira.

Depois de pequena caminhada chegou à rua principal onde embarcaria em um bonde com destino ao centro da cidade. Lá no centro, na rua da Carioca, iria comprar os uniformes do time de futebol da rua, o Revolucionários F.C., nome criado por Igor. O dinheiro para compra dos uniformes veio de uma vaquinha entre a garotada, mas Igor, certamente, entrou com mais da metade da quantia necessária para comprar os uniformes.

Chegando na rua principal, viu o bonde 74 saindo do ponto. Teria que embarcar com o bonde em movimento. Posicionou-se, e correndo para trás em uma velocidade proporcional a velocidade do bonde, ergueu o braço direito para agarrar o balaustre e, ao mesmo tempo, colocou o pé direito no estribo e fez um arco com a perna esquerda ao colocar logo em seguida o pé esquerdo , fazendo um movimento com o corpo para dentro do bonde, o que garantia o equilíbrio e uma subida perfeita. Embarcou no reboque. Naturalmente, embarques de pessoas em bondes em movimento sempre despertavam a atenção dos passageiros. Com Ígor não foi diferente. Finalizado o embarque, Igor , com elegância e assertividade, ohou para os passageiros que observavam, e, somente através de códigos de expressão teve sua habilidade confirmada por todos. Saber embarcar e desembarcar de bondes em movimento, conferia as pessoas um certo status. Em seguida , virou-se, ficando de costas para os passageiros, encostou o ombro em um balaustre ao mesmo tempo segurando-o com uma das mãos. Cruzou as pernas na altura dos pés. Sinalizou para todos que iria viajar no estribo.

Logo em seguida , no ponto seguinte, um outro garoto da turma, da mesma idade de Ígor, embarca no bonde ao lado de Ígor. Era conhecido por todos como Pato Preto. Um garoto negro, paupérrimo, que vivia no morro com um pai de idade avançada e doente e uma mãe que se virava lavando roupas pra colocar alguma comida em casa. No barraco de zinco onde moravam o chão era de terra e a miséria era total. Pato Preto era um bom garoto, tímido, não se metia em confusão e respeitava a todos. Como era de costume, estava com roupas surradas, até mesmo rasgadas, porém limpas. Estava descalço. Aquela garotada , quando chegava o verão, nos domingos caminhavam um pouco até a rua que dá acesso ao bairro do Lins de Vasconcelos para pegar o lotação Lins-Urca e curtir a praia da Urca, próxima a antiga sede da Teve Tupi. Nas águas calmas da Baia de Guanabara faziam a festa. Faziam competições de natação e quem ficava em último ia para o paredón. Certo dia , Pato Preto achou na rua um par de pés de pato, surrado e rasgado, mas que mesmo assim conseguia calçar. Com isso ganhava todas as competições, nunca ia para o paredón e , assim sendo, ganhou a apelido de Pato Preto. Um garoto que não se metia em confusão, mas sempre que a turma ia assistir jogos no Maraca, na geral, e acontecia um briga, um corre-corre, ou alguém arremessava alguma coisa no gramado, os policiais de serviço no local sempre apontavam o dedo para Pato Preto, e o pobre rapaz passava o restante do jogo na cadeia do estádio. Puro preconceito por conta de sua aparência, pois jamais criou confusão. Ficava visivelmente chateado com a injustiça.

No bonde, ao lado de Ígor, disse que estava indo para cidade para tentar arrumar algum dinheiro para os pais. Algum serviço, um bico rápido. Ígor apenas ouvia. O bonde seguiu e no ponto seguinte Pato Preto já se preparava para descer, fugir do cobrador e embarcar na frente, para no próximo ponto fazer a mesma coisa e embarcar no reboque, num jogo de cão e gato. Alguns cobradores faziam vista grossa e deixavam a pessoa viajar sem pagar, outros nem tanto e quando isso acontecia ou se pagava a passagem ou se descia do bonde para pegar outro.

Ígor disse para não se preocupar pois pagaria a passagem. Viajaram juntos até o centro da cidade.

Dias depois chegava o momento de usar o uniforme novo do Revolucionários F.C. em um jogo contra um rival histórico do bairro vizinho do Sampaio. O uniforme era igual ao do America F.C. com camisas vermelhas com números brancos, calções brancos e meias vermelhas. No vestiário, já uniformizado e também com um tênis novinho em folha que ganhou com a vaquinha, Pato Preto fez o seguinte comentário:

- nunca me senti tão bem vestido em toda a minha vida.

A gozação foi geral, menos por parte de Ígor, que quieto e sério, observava atentamente o rapaz, imaginando, certamente um significado mais profundo para aquelas palavras.

Na semana seguinte, uma festa de aniversário de quinze anos de uma irmã de um garoto da turma, agitava a garotada. A festa prometia, como festança com direito a boca livre e tudo mais. Pato Preto, sempre tímido, sabia que aquilo não era pra ele, já que não tinha sido convidado e mesmo se recebesse um convite, não poderia participar, pois não tinha roupas adequadas para aquele evento. Foi então que Ígor, sensibilizado com o que escutara no vestiário, articulou para que Pato Preto recebesse um convite, assim como comprou uma roupa adequada para o rapaz nas lojas Ducal, no centro da cidade. No dia da festa, momentos antes ainda em seu barraco, Pato Preto ficou , já vestido, por alguns bons minutos diante de um espelho. A cabeça do rapaz viajou o mundo imaginando uma outra vida, sem miséria, sem preconceitos que tanto o machucavam. A roupa que ganhou de Ígor tinha um significado bem maior para o rapaz, como se representasse uma oportunidade, um direito igual para todas as pessoas. A mãe do rapaz não se conteve ao ver o filho bem vestido, elegante e caiu em lágrimas, o que também levou o garoto aos prantos.

Refeito das emoções, mais sensível com o que acabara de vivenciar em família, o rapaz foi pra festa. A turma toda já estava lá e foi uma gozação geral com o rapaz. Ainda mais tímido, apenas sorria , de lado.

Se posicionou junto com os colegas em uma parte do jardim, em um local já estrategicamente escolhido por todos pois era a passagem das comidinhas e bebidas , e mergulhou em risoles, bolinhos de queijo, barquinhas com camarão e os espetinhos com salsicha, pimetão e azeitona, as tais sacanagens. Mesmo sendo todos menores de idade, rolava uma cervejinha e muito refresco.

Mesmo com todo o barulho normal de uma festa daquele porte, podia-se ouvir o som dos tambores de um terreiro de umbanda que ficava quatro casas depois. O tambores batiam forte e eis que Pato Preto começou a ficar esquisito, com o rosto meio torto e curvando-se cada vez mais. Algumas pessoas começaram a gritar, dizendo que o rapaz estava passando mal, até que alguém disse que Pato Preto estava , na realidade, recebendo um santo. A gritaria aumentou e algumas mulheres faziam o sinal da cruz, como medo do que viam, outras assustadas se afastavam, até que , uma senhora que estava na festa e que era mãe de santo deu assistência ao rapaz. Envolveu o braço e a mão no rosto do rapaz, ficando assim por um bom tempo até que Pato Preto recuperasse a ordem natural. O rapaz que já era tímido, depois do santo ficou ainda mais calado, encabulado em um canto, se deliciando com as sacanagens, mas sem beber bedidas alcoólicas, por sugestão da mãe de santo.

Terminada a festa, o dia seguinte entre a garotada foi da repercussão e comentários sobre a festança. Estranharam a ausência de Pato Preto. Estranhamento que se acentuou com o passar dos dias, pois não se tinha notícias do rapaz. Até que , cinco dias depois Pato Preto aparece. Seu sumiço deveu-se ao fato que seu pai tinha falecido, no dia seguinte a festa, logo pela manhã. Disse ainda, que estava de mudança do bairro junto com sua mãe, que acabara de conseguir um emprego como empregada de um mansão no bairro das Laranjeiras. Uma casa com muitos empregados, onde teria um lugar para morar junto com o filho que ainda poderia ali trablahar. Despediu-se de todos que ali estavam e pediu que fosse dado um abraço especial em Ígor, que no momento estava ausente.

Chegou o ano de 1964 e com ele o golpe militar. A família de Ígor, comunista, teve que abandonar e deixar para trás a casa e os bens, fugindo do país para viver em Cuba. Os pais fugiram com os dois irmãos mais novos de Ígor, que naquele ano já era maior de idade e ficou no Brasil meio que vagando sem rumo, para depois ir viver em uma pequena e modesta propriedade rural de um tio no extremo oeste do estado de Santa Catarina. A casa dos pais de Ígor, no Rio de janeiro, foi invadida pelos militares, revirada e os bens confiscados.

A morte do pai de Pato Preto e o golpe militar de 1964, tiraram, de vez e a força , as máscaras da infância daqueles adolescentes, naquele momento, ainda bem jovens, porém adultos na vida.

O tempo passou e o ano de 1973 iria colocar os dois jovens, já homens feitos com 27 anos de idade, ambos, novamente frente a frente em situações diametralmente opostas.

Ígor, por sua orientação política, entrou na luta armada contra a ditadura militar e em 1973 foi preso e levado para uma instalaçao da Marinha do Brasil, no centro do Rio de Janeiro. No local, trabalhava Pato Preto, militar da Marinha que seguiu a carreira militar quando teve que servir as forças armadas quando completou 18 anos de idade.

Ao dar entrada na prisão, Pato Preto reconheceu o amigo de infância, ao longe, sem que Ígor o avistasse. Sabia que alí, depois de interrogatórios e torturas, da qual não participava mas tinha pleno conhecimento do que acontecia com os presos políticos, Ígor teria poucas chances de sair com vida. Sempre discreto e responsável, Pato Preto pensou, pensou e , pela primeira vez em sua vida, resolveu desobedecer as normas, de maneira a conseguir e facilitar uma fuga imediata para Ígor. Naquele dia trabalharia por toda a noite e já tinha esboçado um plano. Sabia que pela hora do dia, já no final da tarde e início da noite e com outros presos que seriam interrogados naquela noite, Ígor somente entraria no interrogatório na noite seguinte. A noite caiu e os gritos vindos das salas de tortura indicavam que era o momento de Pato Preto facilitar a fuga de Ígor. Fazendo tudo sozinho, sem ser notado pela facilidade de trânsito no local, conseguiu a chave da cela e para lá se dirigiu. Estava nervoso, pois sabia se fosse descoberto sua vida profisssional teria fim. Abriu a cela e Ígor teve uma baita surpresa quando viu o amigo. Imediatamente Pato Preto pediu que Ígor fechasse a boca, mesmo sem nada ter sido pronunciado por Ígor, e pediu para que vestisse, o mais rápido possível, um uniforme de militar que trouxera escondido. Ígor estava perplexo, mas mesmo assim seguiu as ordens. A medida que ia se vestindo, Pato Preto, dizia que aquilo era para que Ígor pudesse fugir daquele lugar. Rápido, rápido, dizia Pato Preto. Vestido de militar e ao lado de Pato Preto, Ígor saiu naturalmente pela entrada principal, sem antes ouvir do amigo que fugisse do Brasil, pois caso contrário seria detido e morto, isso se não fosse morto antes de ser detido. A fuga repercutiu na instalação militar e um inquérito foi aberto, sem que, ao longo do processo , se encontrasse um responsável. Pato Preto sequer levantou suspeitas.

Ígor conseguiu fugir do país e voltou em 1980, logo depois da anistia. Refez sua vida e , mais uma vez, agora quarenta anos depois daquele dia em que os dois adolescentes compraram o uniforme do Revolucinários F.C. na rua da Carioca, no centro do Rio , eles se encontram, por acaso, no mesmo lugar, no mês de dezembro de 2002.

Ígor, que estava eufórico com a vitória de Lula nas eleições presidenciais dias atrás, abordou o amigo com um carinhoso, esquerda, volver. O abraço foi demorado, e o Bar Luíz, bem em frente , sugeria uma longa conversa.

Uma conversa sobre roupas, sobre oportunidades iguais para todos, sobre direitos que transformam e salvam vidas.


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