quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Libertar o sambista e o samba

Aloy Jupiara e Chico Otavio: Em troca de repressão a adversários, ditadura abriu espaço para bicheiros assumirem o Carnaval do Rio

publicado em 05 de janeiro de 2016 às 19:34
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“Os porões da contravenção”, de Aloy Jupiara e Chico Otavio

Por Cláudia Lamego, no site da editora Record
reprodução parcial

Aloy Jupiara leu num documento que um agente da repressão virara segurança de um bicheiro. Chico Otavio entrevistou o coronel reformado Paulo Malhães e descobriu que ele era um dos mais importantes elos entre a ditadura e a contravenção no Rio de Janeiro.
A partir dessas e de outras informações os dois jornalistas decidiram investigar a fundo as relações entre o jogo do bicho e a repressão. O resultado foi, primeiro, uma série de reportagens sobre o assunto que ora deságua no livro “Os porões da contravenção – Jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado”.
Com uma farta pesquisa em arquivos e jornais da época e entrevistas com militares, sambistas, historiadores e advogados, entre outras fontes, os dois autores revelam na obra como os agentes da ditadura passaram a atuar no crime organizado, em aliança com os bicheiros, após o desmonte do aparelho de repressão a partir do fim dos anos 70.
Esses últimos se beneficiaram da benevolência dos governos militares para garantir segurança, território e organização para seus crimes. A troca de favores era macabra: depois de fazerem desaparecer corpos dos inimigos políticos da ditadura, os agentes da repressão também matavam e torturavam os inimigos ou quem estivesse no caminho dos contraventores.
Sem serem incomodados pela repressão, e atuando em favor dela, por meio dos esquadrões da morte, por exemplo, os bicheiros ganharam poder. Mas faltava a fama e o prestígio: ela veio quando passaram a ocupar um dos mais representativos espaços da cultura carioca: as escolas de samba.
O negócio também se expandiu e eles passaram a explorar as máquinas de caça-níqueis. Três nomes sobressaem nessa história: Anísio Abraão David, capo da Beija-Flor, Castor de Andrade, “dono” da Mocidade Independente, e Capitão Guimarães, este egresso do Exército, que “tomou” a Vila Isabel do então presidente Miro, que se “instalou” depois no Salgueiro.


Como surgiu a ideia de fazer a série de reportagens que deu origem ao livro “Os porões da contravenção” e quais foram os maiores desafios para verter as matérias para o livro?
Aloy: Partimos de pontos diferentes. A motivação de Chico Otavio veio de contatos com Paulo Malhães, da vontade de desvendar aquele personagem, o que fizeram durante o regime e depois dele, instalado na Baixada Fluminense.
A minha foi movida por outra curiosidade. Lendo um documento vi uma referência a um agente da repressão que virara seguranças de um bicheiro. Falei sobre isso com Chico. Seria um caso isolado? Pensamos então na segunda metade dos anos 70, os anos que viram o desmonte do aparelho repressivo, o começo de uma guerra de poder na contravenção e a ascensão de escolas de samba bancadas por bicheiros, como a Beija-Flor e a Mocidade.
Mergulhamos na investigação – analisamos documentos em arquivos; entrevistamos militares, sambistas, advogados; lemos jornais da época; consultamos historiadores – e constatamos que agentes da repressão, torturadores, foram cooptados pelo jogo do bicho e isso levou a contravenção a um novo patamar, a uma nova forma de organização, a se estabelecer como crime organizado. O maior desafio foi conseguir colher depoimentos daqueles que participaram da aliança bicho-repressão.


Como o trabalho da Comissão Nacional da Verdade facilitou o trabalho de apuração do livro? Acham que ainda há o que ser investigado, arquivos a serem abertos, depoimentos a serem dados?
Chico Otávio: Há muito a ser investigado e esclarecido. A Comissão Nacional da Verdade deve ser vista como o início de um trabalho, não seu fim. Com certeza há arquivos que ainda não revelados e pessoas que se mantêm em silêncio sobre a repressão no regime militar.


O livro mostra não só a associação entre os contraventores e os homens dos porões da ditadura como também deixa clara a impunidade aos chefões, que eram monitorados pelos órgãos de informação e poderiam ter sido reprimidos. A ditadura decidiu fazer vista grossa e, apesar de eles terem sido presos algumas vezes, nunca cumpriram as penas por crimes como os assassinatos dos desafetos e o contrabando. Vocês enxergam nessa omissão a origem de tantos problemas de segurança e violência que a população do Rio enfrenta hoje?
Chico Otávio: Foi um jogo de mão dupla, uma lavava a outra. A ditadura se valeu dos bicheiros, os bicheiros se valeram da ditadura.
Ainda que monitorados pelos órgãos de informação, bicheiros estiveram livres para erguer impérios do jogo a partir de uma guerra nas ruas pela tomada de territórios.
Excluindo a prisão de bicheiros após o AI-5, o regime militar não viu ou não quis ver perigo no bicho, não avaliou a periculosidade dos bicheiros e de sua aliança com agentes da repressão, isso que tornou o jogo a organização criminosa, estruturada como a máfia, que é hoje.


O jogo do bicho e o carnaval são duas “instituições” da cultura carioca. Os bicheiros “tomaram” as escolas e criaram a LIESA numa tentativa de serem aceitos pela sociedade, mas também para terem poder de decisão sobre o dinheiro do carnaval. Como vocês veem a relação da imprensa, dos governos e dos fãs com as escolas de samba que são dirigidas por bicheiros que já foram acusados de crimes e até presos? Como explicar essa contradição entre a tradição do carnaval e a influência negativa dos contraventores?
Aloy: A ideia de que o carnaval não sobrevive sem os bicheiros é um clichê recorrente. As escolas são instituições que nasceram como espaço de convivência, lazer e arte dos sambistas.
Quando o desfile das escolas se popularizou, atraindo a classe média, cresceu e virou espetáculo, os bicheiros se apropriaram de agremiações para ganhar exposição, tentar limpar a imagem e passar a ser vistos como mecenas.
Eles se aproveitaram da falta de recursos dos sambistas, que não tinham como bancar carnavais cada vez mais caros. Os bicheiros tinham capital de giro, o dinheiro da jogatina; com ele, as escolas não precisavam esperar a subvenção pública para começar a fazer as alegorias e fantasias.
O poder nas escolas, claro, mudou de mãos. Sambistas tradicionais, como as Velhas Guardas, foram afastadas da tomada das decisões. Antes, eles falavam, ouviam e decidiam. Quem passou a decidir foi o banqueiro do bicho.
Como o carnaval é uma disputa e os sambistas querem que suas escolas sejam campeãs, aceitaram o jogo. Conversando com sambistas mais velhos a gente vê como essa situação é triste: muitos não se sentem valorizados, se consideram colocados de lado; há quem conte que foi barrado ao entrar nas quadras porque os seguranças não sabiam quem eram (muitas vezes esses sambistas são filhos ou netos de fundadores das escolas). Mas há o medo: como se opor a um bicheiro?
Como enfrentar alguém que vive cercado por seguranças, muitos deles policiais? Atualmente, quando tantas empresas investem milhões em patrocínios de enredos, quando o poder público reconhece que as escolas ajudam a mover a economia da cidade, os sambistas não podem gerir e tomar as decisões nas escolas que seus avós e pais criaram porque a contravenção ergueu um muro em torno de um “negócio” que considera seu.


O livro “Os porões da contravenção” surgiu de uma série de reportagens para o jornal O Globo. Num ano de crise nos meios de produção do jornalismo, especialmente dos jornais impressos, o que significa pra vocês a realização de um livro que junta os ingredientes clássicos do jornalismo: uma boa pista, muitas fontes, extensa apuração e um texto bem escrito?
Chico Otavio: A palavra e o sentimento são de realização mesmo. Esperamos que os leitores gostem. Queríamos contar uma história que ainda não tinha sido contada. Contar histórias é o nosso trabalho diário.
A crise no meio jornal não é uma crise da notícia, mas do meio, do modelo de negócio. As pessoas querem, cada vez mais, estar bem informadas, e há diferentes plataformas onde elas podem buscar a informação. Isso nos motivou. Nós acreditamos na força da reportagem.


PS do Viomundo: No livro O Lado Sujo do Futebol, escrito em parceria com Leandro Cipoloni, Amaury Ribeiro Jr. e Tony Chastinet, tratamos da relação entre o então presidente da CBF, João Havelange, o bicheiro Castor de Andrade e o então superpoderoso da Globo, Boni. Além do Carnaval, os bicheiros também lavaram dinheiro no futebol. O repórter André Caramante comprou e leu o livro dos colegas Jupiara e Chico Otávio e diz que é um daqueles que você começa a ler e não consegue parar.


Fonte: VIOMUNDO
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No início dos anos da década de 1970, até o ano de 1975, a escola de samba Beija-Flor de Nilópolis se apresentou somente com enredos que enalteciam o Brasil, em apoio a ditadura militar.

Os resultados foram desastrosos.

Em 1976, a escola de Nilópolis deu uma guinada e desfilou com um enredo que falava do jogo do bicho.

Ficou em primeiro lugar e pela primeira vez ganhava o carnaval do Rio de janeiro.

Abaixo a letra do samba:

Sonhar com anjo é borboleta
Sem contemplação
Sonhar com rei dá leão
Mas nesta festa de real valor, não erre não
O palpite certo é Beija-flor (Beija-flor)
Cantando e lembrando em cores
Meu Rio querido, dos jogos de flores
Quando o Barão de Drummond criou
Um jardim repleto de animais
Então lançou...
Um sorteio popular
E para ganhar
Vinte mil réis com dez tostões
O povo começou a imaginar...
Buscando... no belo reino dos sonhos
Inspiração para um dia acertar

Sonhar com filharada... é o coelhinho
Com gente teimosa, na cabeça dá burrinho
E com rapaz todo enfeitado
O resultado pessoal... É pavão ou é veado

Desta brincadeira
Quem tomou conta em Madureira
Foi Natal, o bom Natal
Consagrando sua Escola
Na tradição do Carnaval
Sua alma hoje é águia branca
Envolta no azul de um véu

Saudado pela majestade, o samba
E sua brejeira corte
Que lhe vê no céu


Em 1984, outra escola, a Portela, também abordou o jogo do bicho -  não de forma direta - em seu enredo e também venceu o carnaval do Rio.
O  21º e último título conquistado pela escola.

Abaixo a letra do samba:


Samba Enredo 1984 - Contos de Areia

G.R.E.S. Portela (RJ)

Bahia é um encanto a mais
Visão de aquarela
E no ABC dos Orixás
Oranian é Paulo da Portela
Um mundo azul e branco
O deus negro fez nascer
Paulo Benjamim de Oliveira
Fez esse mundo crescer (okê, okê)

Okê-okê Oxossi
Faz nossa gente sambar (bis)
Okê-okê, Natal
Portela é canto no ar

Jogo feito, banca forte
Qual foi o bicho que deu?
Deu Águia, símbolo da sorte
Pois vinte vezes venceu

É cheiro de mato
É terra molhada (bis)
É Clara Guerreira
Lá vem trovoada

Epa hei, Iansã, epa hei (bis)
Na ginga do estandarte
Portela derrama arte
Neste enredo sem igual
Faz da vida poesia
E canta sua alegria
Em tempo de carnaval
(Ê Bahia...)


Em 1982, em uma crítica aos caminhos grandiosos que os desfiles tomavam, até mesmo retirando o espaço dos sambistas, o Império Serrano fez um dos mais belos samba de enredo do carnaval carioca.

Abaixo a letra:

Samba Enredo 1982 - Bum Bum Paticumbum Prugurundum


Bumbum paticumbum prugurundum
O nosso samba minha gente é isso aí, é isso aí
Bumbum paticumbum prugurundum,
Contagiando a Marquês de Sapucaí (Eu enfeitei )

Enfeitei meu coração (enfeitei meu coração )
De confete e serpentina
Minha mente se fez menina
Num mundo de recordação
Abracei a coroa imperial, fiz meu carnaval,
Extravasando toda a minha emoção
Óh, Praça Onze, tu és imortal
Teus braços embalaram o samba
A sua apoteose é triunfal
De uma barrica se fez uma cuíca
De outra barrica um surdo de marcação

Com reco-reco, pandeiro e tamborim
E lindas baianas o samba ficou assim
Com reco-reco, pandeiro e tamborim
E lindas baianas o samba ficou assim

E passo a passo no compasso o samba cresceu
Na Candelária construiu seu apogeu
As burrinhas, que imagem, para os olhos um prazer
Pedem passagem pros moleques de Debret
As africanas, que quadro original
Iemanjá, Iemanjá, enriquecendo o visual( Vem meu amor)

Vem, meu amor, manda a tristeza embora
É carnaval, a folia, neste dia ninguém chora

Super Escolas de Samba S/A
Super-alegorias
Escondendo gente bamba
Que covardia!


A discussão vem de longa data, porém é certo que nos últimos anos, talvez os últimos 15 anos, os desfiles das escolas de samba, no que diz respeito aos enredos, deram uma encaretada geral.

As críticas políticas e sociais desapareceram  dos desfiles e a TV Globo passou , até  mesmo, a definir enredos para as escolas, ou um tema que fosse abordado por todas as escolas nos desfiles.

O sono e a monotonia tornaram-se inevitáveis para todos que acompanham os desfiles, ao vivo na passarela do samba Darcy Ribeiro, ou pela tela da TV no meio desse povo, ouvindo um festival de bobagens protagonizados  pelos comentaristas, ao estilo padrão globo de idiotice.

Sequestrado pela TV e pelo bicho, o samba deu anta.

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