terça-feira, 3 de novembro de 2015

Caos ambiental

País poderá viver drama climático em 2040


Seca em Silves (AM) em 2005. Foto: Ana Cintia Gazzelli/WWF
Seca em Silves (AM) em 2005. Foto: Ana Cintia Gazzelli/WWF

Em 25 anos, Brasil conviverá com calor extremo, falta d’água e de energia, queda na produção agropecuária, doenças e prejuízo por ressacas, sugere maior levantamento já feito sobre impactos do clima.

Por Claudio Angelo e Cíntya Feitosa, do OC –
Daqui a apenas 25 anos, no tempo de vida da maior parte dos leitores deste texto, o Brasil poderá ter seu cotidiano e sua economia transformados – para pior – pela mudança do clima. Secas violentas impedirão o parque hidrelétrico de gerar energia para atender à população e tornarão fúteis investimentos bilionários em barragens na Amazônia. Culturas como a soja poderão ter redução de até 39% em sua área. A elevação do nível do mar deixará exposto a alto risco de destruição um patrimônio imobiliário de até R$ 124 bilhões apenas na cidade do Rio de Janeiro. Mais idosos morrerão por ondas de calor, especialmente no Norte e no Nordeste
As más notícias vêm do maior estudo já realizado sobre impactos da mudança climática no Brasil. Trata-se do “Brasil 2040 – Alternativas de Adaptação às Mudanças Climáticas”, encomendado pela Secretaria de Estudos Estratégicos da Presidência da República a diversos grupos de pesquisa do país e divulgado nesta quinta-feira (29/10), sem alarde, na página do extinto ministério na internet. O Ministério do Meio Ambiente, que herdara o estudo após a demissão de seus idealizadores pela SAE em março, se preparava para publicá-lo nos próximos dias.
O trabalho busca entender como o clima poderá variar no Brasil nos próximos 25, 55 e 85 anos, de forma a embasar políticas públicas de adaptação em cinco grandes áreas: saúde, recursos hídricos, energia, agricultura e infraestrutura (costeira e de transportes).
Os cenários para os diversos setores foram construídos a partir de dois modelos climáticos globais usados pelo IPCC, o painel do clima das Nações Unidas, e regionalizados para o Brasil pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Esses modelos são grandes simulações da Terra, onde são incluídas variáveis como vento, oceanos e florestas. Alimentando-os com dados sobre a taxa de emissões de gases de efeito estufa, eles conseguem estimar como o clima vai variar nas próximas décadas ou séculos.
Os modelos do IPCC têm a vantagem de enxergar o planeta inteiro, porém são “míopes”: eles dividem o mundo em células de 200 km x 200 km, grandes demais para permitir investigar variações climáticas dentro de uma região geográfica menor ou um país. O que o Inpe fez foi usar dois desses modelos e aumentar sua resolução para 20 km x 20 km, dando um zoom na América do Sul. Isso permitiu montar pela primeira vez cenários detalhados de chuva e temperatura para as próximas décadas no Brasil.
Dois modelos foram utilizados: o britânico HadGEM-2 e o japonês Miroc-5. Por uma questão de personalidade matemática, por assim dizer, ambos “enxergam” o clima no futuro de jeitos diferentes: o britânico tende a apontar um mundo mais seco no futuro, enquanto o japonês vê um mundo mais chuvoso.
Cada modelo, por sua vez, foi rodado em dois cenários de emissão de gases de efeito estufa do IPCC, as chamadas “trajetórias representativas de concentração”: o RCP 8,5, que assume que a humanidade não fará nada para controlar as emissões de CO2; e o RCP 4,5, que assume esforços limitados de controle de emissões, mas ainda fora da trajetória dos 2oC considerados o limite máximo “seguro” de aquecimento.
O que a modelagem revelou foi que, em todos os cenários, o Brasil de 2040 será um país mais quente e mais seco. As temperaturas médias nos meses mais quentes do ano podem subir até 3oC em relação às médias atuais no Centro-Oeste. A região Sul tende a ficar mais chuvosa, enquanto o Sudeste, o Centro-Oeste e partes do Norte e Nordeste teriam reduções nas chuvas, em especial nos meses de verão.
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O primeiro efeito disso é uma redução na vazão dos rios que abastecem a maior parte da população brasileira, como mostraram os estudos sobre recursos hídricos do “Brasil 2040”.
Um grupo liderado por Francisco de Assis Souza e Eduardo Martins, da Universidade Federal do Ceará e da Fundação Cearense de Meteorologia, usou os dados de chuva para construir um modelo de vazão – não é possível estimar quanto um rio enche ou seca apenas olhando para a média de chuvas.
O resultado é dramático para quem acha que o Sudeste do Brasil já sofreu o suficiente com falta d’água e ameaça de racionamento de energia nos últimos três anos: no melhor cenário, vários rios de Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Tocantins, Bahia e Pará terão reduções de vazão de 10% a 30%.
Transpostos para as usinas hidrelétricas, os dados de vazão trazem um desafio para o setor de energia no Brasil: as mais importantes usinas do país – Furnas, Itaipu, Sobradinho e Tucuruí – teriam reduções de vazão de 38% a 57% no pior cenário.
Na Amazônia, região eleita pelo governo a nova fronteira da hidroeletricidade no país, as quedas também seriam significativas, como adiantou o OC em abril: a vazão de Belo Monte cairia de 25% a 55%, a de Santo Antônio, de 40% a 65%, e a da usina planejada de São Luís do Tapajós, de 20% a 30%.
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Vazões estimadas de algumas das principais hidrelétricas do país para o período 2011-2040. A linha verde mostra o melhor cenário; a vermelha, o pior.

Hidrelétricas em colapso
À exceção de São Luís, a maioria das novas usinas na Amazônia é a fio d’água, ou seja, não possui grande reservatório. Isso significa que seu fator de capacidade, ou seja, a quantidade de energia constante gerada ao longo do ano, é reduzido, já que a vazão dos rios amazônicos varia enormemente entre a estação da seca e a da chuva. Belo Monte, por exemplo, tem um fator de capacidade de cerca de 40%, que, reduzido à metade, daria à hidrelétrica de R$ 30 bilhões um fator de capacidade menor que o de usinas eólicas – para as quais os planejadores energéticos brasileiros e a presidente Dilma Rousseff torcem o nariz, já que essas usinas não são capazes de gerar “energia firme” nos períodos sem vento. No total, a geração hidrelétrica cai de 8% a 20% no país.
“O planejamento energético precisa ser revisto urgentemente à luz dos dados do ‘2040’, sob pena de a sociedade enterrar bilhões de reais em projetos que não se pagam”, disse Carlos Rittl, secretário-executivo do OC.
Os dados de Martins e Souza foram utilizados por uma equipe de pesquisadores da Coppe-URFJ liderada por Roberto Schaeffer para analisar o que acontece com a eletricidade do Brasil nos próximos 25 anos caso se confirmem os cenários de mudança do clima.
O grupo usou em sua análise, por sua vez, dois modelos computacionais: um deles leva em conta a matriz energética, a demanda por eletricidade e o crescimento do PIB para estimar o comportamento do sistema elétrico brasileiro – que fontes crescem na matriz, que fontes diminuem, de acordo com o custo e o fator de capacidade. O outro modelo simula como as usinas hidrelétricas e termelétricas operam no mundo real de acordo com a disponibilidade de água nos reservatórios.
A principal conclusão do estudo de Schaeffer e colegas é filosófica: o planejamento elétrico no Brasil não poderá mais ser feito como vem sendo. Hoje, os responsáveis pelo setor no governo trabalham segundo a filosofia do “estado estacionário” de variáveis climáticas, ou seja, o comportamento dos rios no futuro seguirá o comportamento do passado.
“Não dá mais para fazer isso. O futuro não vai obrigatoriamente repetir o passado”, disse Schaeffer ao OC.
A análise dos pesquisadores mostra que, em todos os cenários analisados, há uma queda na vazão das principais bacias hidrográficas brasileiras, que empurra o sistema elétrico para uma situação de desequilíbrio estrutural: o sistema não dá conta de atender a demanda, provocando cortes de carga – em português claro, apagões.
Sem medidas de corte de emissões (ou seja, no RCP 8,5), no pior cenário, a vazão dos reservatórios cai 30% e o risco de déficit em alguns anos se aproxima de 100% – a margem considerada “segura” pelo governo para evitar apagões é de 5%. No melhor cenário, a queda de vazão das hidrelétricas chega a 10%, e o risco de déficit, a 60% em alguns anos. O custo de operação do sistema, que leva em conta inclusive o acionamento de térmicas, sobe em oito vezes no melhor cenário e em 16,7 vezes no pior.
A consequência do colapso das hidrelétricas é o aumento do uso de carvão mineral e gás natural na matriz brasileira, o que tanto aumenta o custo de operação do sistema quanto as emissões de carbono, agravando ainda mais o efeito estufa. Outra consequência pode ser o retorno das usinas com grandes reservatórios, em especial na região Sul, onde vai chover mais.
Os resultados surpreenderam até os pesquisadores. “Se isso acontecer, o país para se não tiver um seguro”, disse Schaeffer.
Parte desse “seguro” não depende apenas do Brasil: é o corte de emissões dentro de um acordo global do clima. Segundo o estudo, somente o custo de expansão do sistema elétrico cairia em R$ 122 bilhões entre o cenário RCP 8,5 (sem mitigação da mudança do clima) e o cenário RCP 4,5 (com mitigação).
O “seguro” cabe ao país contratar, segundo o pesquisador, é a adaptação do sistema. E a melhor maneira de adaptar, curiosamente, é reduzindo emissões: aumentando em muito a eficiência energética e o uso de renováveis, de modo a reduzir a dependência de termelétricas fósseis e de hidrelétricas, e colocando um preço nas emissões de carbono – não necessariamente uma taxa, Schaeffer apressa-se a dizer.
Os dados de energia e recursos hídricos do “Brasil 2040” foram apresentados ao governo federal ao longo do ano e recebidos com algumas críticas – o estudo da UFCE foi considerado “alarmista” pela própria SAE.
“Uma crítica que a gente pode receber é que há incerteza. Mas também há incerteza sobre se você vai ficar doente, e nem por isso você deixa de fazer um plano de saúde”, compara Roberto Schaeffer.

Mico no Mapitoba
Os relatórios sobre agricultura, elaborados por equipes da Embrapa e do Agroicone, também devem causar arrepios no governo. Eles mostram que a maior aposta da ministra Kátia Abreu (Agricultura) para a futura expansão da produção no país, o chamado Mapitoba (uma zona de cerrados entre Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia), pode virar um mico na mão de investidores.
Uma das análises aponta para a tendência de desvalorização das terras por decorrência das mudanças na produção e aumento do risco climático. Em Pernambuco, as terras podem perder até 43% do seu valor. No Pará, a perda pode ser de até 36%.
No estado do Maranhão, as perdas podem variar de 2% a 16%, no Tocantins de 14% a 26% e de 3% a 14% no Piauí. Um dos cenários aponta valorização das terras na Bahia, mas esse estado também pode ter perdas de 5% no valor das terras.
Os impactos das mudanças do clima na agricultura podem levar a perdas de área agriculturável em quase todas as culturas avaliadas – o efeito mais grave deve recair sobre a área de cultivo de soja, com perdas de até 39%. O feijão, arroz e milho safrinha podem ter redução de área cultivável de 26%, 24% e 28%, respectivamente.
No caso da cana-de-açúcar, as áreas cultiváveis podem aumentar, por ser um gênero que precisa de calor, em especial para a produção de etanol. Porém, o cultivo deve migrar para regiões que hoje são mais frias. A produção de mandioca deve sair do Nordeste, muito seco, e migrar para áreas de Cerrado e Amazônia. O caupi, ou feijão-de- corda, já está migrando do Nordeste para o Centro-Oeste.
A pesquisa sugere que a própria dinâmica do mercado vai ser uma das medidas de adaptação: a redução de áreas aptas para produção deve afetar os preços das commodities agrícolas; as regiões de maior aptidão produtiva devem responder positivamente, enquanto outras regiões deverão perder produção; haverá impactos sobre os preços ao produtor e ao consumidor final; novos equilíbrios de oferta, demanda e preços serão gerados, influenciando na produção.

Calor
O capítulo de saúde, que não está entre os relatórios disponibilizados pela SAE mas ao qual o OC teve acesso, avaliou apenas os impactos das ondas de calor sobre taxas de mortalidade. Os efeitos são heterogêneos, de acordo com a faixa etária, clima regional e as condições de saneamento. Os idosos são o grupo populacional mais vulnerável, enquanto na avaliação por região, Norte e Nordeste devem ser as mais afetadas.
No Tocantins, por exemplo, o aumento do número de mortes entre idosos pode chegar a 9%, em decorrência de doenças respiratórias agravadas por ondas de calor. Rio Grande do Norte e Paraíba também devem ter aumento superior a 5% nos índices de mortalidade no mesmo grupo.
“Temos o dado demográfico: a população vai envelhecer. Então, o Brasil vai se tornar mais vulnerável às mudanças do clima”, diz o coordenador do estudo, José Feres, do IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas).
O estudo também alerta para a disseminação de doenças infecciosas endêmicas, que podem aumentar de acordo com as condições climáticas, como malária, dengue e leptospirose. Outra preocupação são eventos climáticos extremos como tempestades, ocasionando inundações, afogamentos, desabamentos, aglomerações, entre outros. “Nossa principal recomendação é a criação de um sistema de alerta para ondas de calor e outros eventos climáticos extremos. É uma medida simples, mas que o Brasil ainda não tem”, diz Feres.

Estradas ruins
A avaliação dos impactos sobre a infraestrutura de transportes traz a informação que os brasileiros que viajam de carro ou ônibus já sabem: nossa malha rodoviária já é ruim. Mas pode piorar. O estresse por chuvas intensas, acúmulo de umidade e altas temperaturas demanda altos investimentos em adaptação.
Combinando informações sobre sinalização, qualidade do asfalto e condições das rodovias, elaborou-se o Índice de Vulnerabilidade da Infraestrutura Rodoviária (IVIR). Quanto mais alto, mais vulneráveis são as rodovias. Observando os mapas, é possível comparar o número de rodovias vulneráveis hoje e em 2040.

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As regiões Sudeste e Sul, que hoje já apresentam estradas em boas condições, serão as menos afetadas. Atualmente, apenas oito estados apresentam segmentos vulneráveis, contra 22 estados no cenário futuro, além do Distrito Federal. A região Nordeste é campeã em vulnerabilidade, em especial no litoral – tanto pela possibilidade de aumento de temperaturas quanto pelas condições das rodovias.
“No Brasil, não há um banco de dados consistente sobre os efeitos de eventos climáticos na infraestrutura rodoviária e não há indícios de que essa situação irá mudar no curto prazo”, diz o relatório. “Tal banco de dados é importante para determinar a resiliência atual e para prover a base para estudos sobre impactos relacionados ao clima futuros.”
A análise ressalta que os custos de adaptação e reparos podem ser muito superiores à economia feita com obras mais baratas, que não serão satisfatórias em médio e longo prazo. Também recomenda o desenvolvimento de estudos sobre o risco de afogamento da infraestrutura rodoviária em decorrência de chuvas fortes, em todo o território nacional.
“São soluções de engenharia tradicional, mas que sairão caríssimas por causa do tamanho da rede”, disse Sérgio Margulis, economista carioca que idealizou o “Brasil 2040”.

Olha a onda
A equipe do engenheiro Wilson Cabral Jr., do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) também criou um índice de vulnerabilidade para a infraestrutura costeira e portuária do Brasil, na tentativa de estimar o que aconteceria com o litoral em caso de elevação do nível do mar conforme previsto pelo IPCC.
Os pesquisadores tiveram de lidar com um problema adicional: a absoluta falta de informações sobre como o nível do mar vem subindo no país nas últimas décadas e sobre como as ondas vêm ficando mais fortes. “A rede de marégrafos no Brasil é incipiente, e a de ondógrafos mais ainda”, disse Márcia Oliveira, coordenadora de Gerenciamento Costeiro do Ministério do Meio Ambiente.
Segundo Cabral, nem mesmo as bases de dados usadas para estimar a altimetria (a altura do terreno acima do nível do mar) e a batimetria (o perfil do fundo oceânico), dois dados que precisam ser combinados para informar a elevação da lâmina d’água e o risco de inundação, conversam entre si. Há um erro sistemático nas medições que os pesquisadores não conseguem nem mesmo estimar.
Cabral e seu aluno Vítor Zanetti usaram, então, as projeções de nível do mar do IPCC para estimar risco de alagamento e ressacas em Santos e no Rio de Janeiro. Um outro grupo, da USP, estimou o impacto nos portos e as medidas de adaptação necessárias.
Os resultados mostram que quase todos os portos do país precisam já hoje de medidas de adaptação, seja para aumentar a chamada “borda livre”, o espaço seco entre o cais e a água, seja para aumentar o calado por causa de assoreamento. O custo dessas medidas, que inclui a construção de quebra-mares, foi calculado em R$ 7 bilhões – mais do que o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) investiu em portos.
Para Santos e para o Rio, foram mapeadas as zonas em risco alto e muito alto de deslizamento, ressaca e inundação, o que inclui hospitais e a infraestrutura de transporte público, além de estações de tratamento de esgotos. A Linha Vermelha, no Rio, está longe da praia, mas deve alagar com frequência ainda maior devido ao efeito de “barragem” que o mar mais alto exerce sobre os canais que a rodovia cruza. O quadro que emerge nas duas cidades é o de colapso urbano em caso de ressacas e inundações muito graves no futuro. Apenas no Rio, o patrimônio imobiliário sob alto risco foi estimado em R$ 124 bilhões.
“É de se esperar que tomadores de decisão, em seus diversos níveis, tenham conhecimento destes estudos e resultados e possam utilizá-los em abordagens de planejamento de curto, médio e longo prazos”, escreveram os pesquisadores. (Observatório do Clima/ #Envolverde)
* Publicado originalmente no site Observatório do Clima

Fonte: ENVOLVERDE
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Altair Sales Barbosa: Extinção do cerrado ameaça aquíferos, bacias do São Francisco, Amazonas e Paraná; crise hídrica está apenas no começo

publicado em 04 de novembro de 2015 às 12:01
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“O Cerrado está extinto e isso leva ao fim dos rios e dos reservatórios de água”


Uma das maiores autoridades sobre o tema, professor da PUC Goiás diz que destruição 
do bioma é irreversível e que isso compromete o abastecimento potável em todo o País
Elder Dias, no Jornal Opção
Uma ilha ambiental em meio à metrópole está no Campus 2 da Pon­tifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). É lá o local onde Altair Sales Barbosa idealizou e realizou uma obra que se tornou ponto turístico da capital: o Memorial do Cerrado, eleito em 2008 o local mais bonito de Goiânia e um dos projetos do Instituto do Trópico Subúmido (ITS), dirigido pelo professor.
Foi lá que Altair, um dos mais profundos conhecedores do bioma Cerrado, recebeu a equipe do Jornal Opção. Como professor e pesquisador, tem graduação em Antropologia pela Universidade Católica do Chile e doutorado em Arqueologia Pré-Histórica pelo Museu Nacional de História Natural, em Washington (EUA). Mais do que isso, tem vivência do conhecimento que conduz.
É justamente pela força da ciência que ele dá a notícia que não queria: na prática o Cerrado já está extinto como bioma. E, como reza o dito popular, notícia ruim não vem sozinha, antes de recuperar o fôlego para absorver o impacto de habitar um ecossistema que já não existe, outra afirmação produz perplexidade: a devastação do Cer­rado vai produzir também o desaparecimento dos reservatórios de água, localizados no Cerrado, o que já vem ocorrendo — a crise de a­bastecimento em São Paulo foi só o início do problema.
Os sinais dos tempos indicam já o começo do período sombrio: “Enquanto se es­tá na fartura, você é capaz de re­partir um copo d’água com o ir­mão; mas, no dia da penúria, ninguém repartirá”, sentencia o professor.

“Memorial do Cerrado” – o nome deste espaço de preservação criado pelo sr. aqui no Campus 2 da PUC Goiás, é uma expressão pomposa. Mas, tendo em vista o que vivemos hoje, é algo quase que tristemente profético. O Cerrado está mesmo em vias de extinção?

Para entender isso é preciso primeiramente entender o que é o Cerrado. Dos ambientes recentes do planeta Terra, o Cerrado é o mais antigo. A história recente da Terra começou há 70 milhões de anos, quando a vida foi extinta em mais de 99%. A partir de então, o planeta começou a se refazer novamente. Os primeiros sinais de vida, principalmente de vegetação, que ressurgem na Terra se deram no que hoje constitui o Cerrado.
Por­tanto, vivemos aqui no local onde houve as formas de ambiente mais antigas da história recente do planeta, principalmente se levarmos em consideração as formações vegetais. No mínimo, o Cerrado começou há 65 milhões de anos e se concretizou há 40 milhões de anos.
O Cerrado é um tipo de am­biente em que vários elementos vi­vem intimamente interligados uns aos outros. A vegetação depende do solo, que é oligotrófico [com nível muito baixo de nutrientes]; o solo depende de um tipo de clima especial, que é o tropical subúmido com duas estações, uma seca e outra chuvosa. Vários outros fatores, incluindo o fogo, influenciaram na formação do bioma – o fogo é um elemento extremamente importante porque é ele que quebra a dormência da maioria das plantas com sementes que existem no Cerrado.
Assim, é um ambiente que de­pen­de de vários elementos. Isso significa que já chegou em seu clímax evolutivo. Ou seja, uma vez degradado não vai mais se recuperar na plenitude de sua biodiversidade. Por isso é que falamos que o Cerrado é uma matriz ambiental que já se encontra em vias de extinção.

Por que o sr. é tão taxativo?

Uma comunidade vegetal é medida não por um determinado tipo de planta ou outro, mas, sim, por comunidades e populações de plantas. E já não se encontram mais populações de plantas nativas do Cerrado. Podemos encontrar uma ou outra espécie isolada, mas encontrar essas populações é algo praticamente impossível.
Outra questão: o solo do Cerrado foi degradado por meio da ocupação intensiva. Retiraram a gramínea nativa para a implantação de espécies exóticas, vindas da África e da Austrália. A introdução dessas gramíneas, para o pastoreio, modificou radicalmente a estrutura do solo. Isso significa que naquele solo, já modificado, a maioria das plantas não conseguirá brotar mais.
Como se não bastasse tudo isso, o Cerrado foi incluído na política de ex­pansão econômica brasileira co­mo fronteira de expansão. É uma á­rea fácil de trabalhar, em um planalto, sem grandes modificações geomorfológicas e com estações bem definidas. Junte-se a isso toda a tecnologia que hoje há para correção do solo. É possível tirar a acidez do solo utilizando o calcário; aumentar a fertilidade, usando adubos. Com isso, altera-se a qualidade do solo, mas se afetam os lençóis subterrâneos e, sem a vegetação nativa, a água não pode mais infiltrar na terra.
Onde há pastagens e cultivo, então, o Cerrado está inviabilizado para sempre, é isso?
Onde houve modificação do solo a vegetação do Cerrado não brota mais. O solo do Cerrado é oligotrófico, carente de nutrientes básicos. Quando o agricultor e o pecuarista enriquecem esse solo, melhorando sua qualidade, isso é bom para outros tipos de planta, mas não para as do Cerrado. Por causa disso, não há mais como recuperar o ambiente original, em termos de vegetação e de solo.
Mas o mais importante de tudo isso é que as águas que brotam do Cerrado são as mesmas águas que alimentam as grandes bacias do continente sul-americano. É daqui que saem as nascentes da maioria dessas bacias. Esses rios todos nascem de aquíferos. Um aquífero tem sua área de recarga e sua área de descarga. Ao local onde ele brota, formando uma nascente, chamamos de área de descarga. Como ele se recarrega? Nas partes planas, com a água das chuvas, que é absorvida pela vegetação nativa do Cerrado.
Essa vegetação tem plantas que ficam com um terço de sua estrutura exposta, acima do solo, e dois terços no subsolo. Isso evidencia um sistema radicular [de raízes] extremamente complexo. Assim, quando a chuva cai, esse sistema radicular absorve a água e alimenta o lençol freático, que vai alimentar o lençol artesiano, que são os aquíferos.
Quando se retira a vegetação na­tiva dos chapadões, trocando-a por outro tipo, alterou-se o ambiente. Ocorre que essa vegetação introduzida – por exemplo, a soja ou o al­go­dão ou qualquer outro tipo de cul­tura para a produção de grãos – tem uma raiz extremamente superficial. Então, quando as chuvas caem, a água não infiltra como deveria. Com o passar dos tempos, o nível dos lençóis vai diminuindo, afetando o nível dos aquíferos, que fica menor a cada ano.

Qual é a consequência imediata desse quadro?

Em média, dez pequenos rios do Cerrado desaparecem a cada ano. Esses riozinhos são alimentadores de rios maiores, que, por causa disso, também têm sua vazão diminuída e não alimentam reservatórios e outros rios, de que são afluentes.
Assim, o rio que forma a bacia também vê seu volume diminuindo, já que não é abastecido de forma suficiente. Com o passar do tempo, as águas vão desaparecendo da área do Cerrado. A água, então, é outro elemento importante do bioma que vai se extinguindo.
Hoje, usa-se ainda a agricultura irrigada porque há uma pequena reserva nos aquíferos. Mas, daqui a cinco anos, não haverá mais essa pequena reserva. Estamos colhendo os frutos da ocupação desenfreada que o agronegócio impôs ao Cerrado a partir dos anos 1970: entraram nas áreas de recarga dos aquíferos e, quando vêm as chuvas, as águas não conseguem infiltrar como antes e, como consequência, o nível desses aquíferos vai caindo a cada ano.
Vai chegar um tempo, não muito distante, em que não haverá mais água para alimentar os rios. Então, esses rios vão desaparecer.
Por isso, falamos que o Cerrado é um ambiente em extinção: não existem mais comunidades vegetais de formas intactas; não existem mais comunidades de animais – grande parte da fauna já foi extinta ou está em processo de extinção; os insetos e animais polinizadores já foram, na maioria, extintos também; por consequência, as plantas não dão mais frutos por não serem polinizadas, o que as leva à extinção também. Por fim, a água, fator primordial para o equilíbrio de todo esse ecossistema, está em menor quantidade a cada ano.

Como é a situação desses aquíferos atualmente?

Há três grandes aquíferos na região do Cerrado: o Bambuí, que se formou de 1 bilhão de anos a 800 milhões de anos antes do momento presente; os outros dois são divisões do Aquífero Guarani, que está associado ao Arenito Botucatu e ao Arenito Bauru que começou a se formar há 70 milhões de anos.
O Guarani alimenta toda a Bacia do Rio Paraná: a maior parte dos rios de São Paulo, de Mato Grosso, de Mato Grosso do Sul – incluindo o Pantanal Mato-Grossense – e grande parte dos rios de Goiás que correm para o Paranaíba, como o Meia Ponte. Toda essa bacia depende do Aquífero Guarani, que já chegou em seu nível de base e está alimentando insuficientemente os rios que dependem dele. Por isso, os rios da Bacia do Paraná diminuem sua vazão a cada ano que passa.

Então, podemos ter nisso a explicação para a crise da água em São Paulo?

Exato. Como medida de urgência, já estão perfurando o Arenito Bauru – que é mais profundo que o Botucatu, já insuficiente –, tentando retirar pequenas reservas de água para alimentar o sistema Cantareira [o mais afetado pela escassez e que abastece a capital paulista]. Mesmo se chover em grande quantidade, isso não será suficiente para que os rios juntem água suficiente para esse reservatório.
Assim como ocorre no Can­tareira, outros reservatórios espalhados pela região do Cerrado – Sobradinho, Serra da Mesa e outros – vão passar pelo mesmo problema. Isso porque o processo de sedimentação no fundo do lago de um reservatório é um processo lento. Os sedimentos vão formando argila, que é uma rocha impermeável. Então, a água daquele lago não vai alimentar os aquíferos. Mesmo tendo muita quantidade de água superficial, ela não consegue penetrar no solo para alimentar os aquíferos. Se não for usada no consumo, ela vai simplesmente evaporar e vai cair em outro lugar, levada pelas correntes aéreas. Isso é outro motivo pelo qual os aquíferos não conseguem recuperar seu nível, porque não recebem água.

Geologicamente sendo o mais antigo, seria natural que o Cerrado fosse o primeiro bioma a desaparecer. Mas isso em escala geológica, de milhões de anos. Mas, pelo que o sr. diz, a antropização [ação humana no ambiente] multiplicou em muitíssimas vezes esse processo de extinção.
Sim. Até meados dos anos 1950, tínhamos o Cerrado praticamente intacto no Centro-Oeste brasileiro. Desde então, com a implantação de infraestrutura viária básica, com a construção de grandes cidades, como Brasília, criou-se um conjunto que modificou radicalmente o ambiente. A partir de 1970, quando as grandes multinacionais da agroindústria se apossaram dos ambientes do Cerrado para grandes monoculturas, aí começa o processo de finalização desse bioma. Ou seja, o homem sendo responsável pelo fim desse ambiente que é precioso para a história do planeta Terra.

Em que o Cerrado é tão precioso?

De todas as formas de vegetação que existem, o Cerrado é a que mais limpa a atmosfera. Isso ocorre porque ele se alimenta basicamente do gás carbônico que está no ar, porque seu solo é oligotrófico.
Diz-se que o Cerrado é o contrário da Amazônia: uma floresta invertida, em confirmação à definição que o sr. deu sobre o fato de dois terços de cada planta do Cerrado estarem debaixo da terra. Ou seja, a destruição do Cerrado é muito mais séria do que alcança a nossa visão com o avanço da fronteira agrícola. É uma devastação muito maior, porque também ocorre longe dos olhos, subterrânea.
Isso faz sentido, porque, na parte subterrânea, além do sequestro de carbono está armazenada a água, sem a qual não prospera nenhuma atividade econômica. A Amazônia terminou de ser formada há apenas 3 mil anos, um processo que começou há 11 mil anos, com o fim da glaciação no Hemisfério Norte. A configuração que tem hoje existe na plenitude só há 3 mil anos. A Mata Atlântica tem 7 mil anos. São ambientes que, se degradados, é possível recuperá-los, porque são novos, estão em formação ainda.
Já com o Cerrado isso é impossível, porque suas árvores já atingiram alto grau de especialização. Tanto que o processo de quebra da dormência de determinadas sementes é extremamente sofisticado. Uma semente de araticum, por exemplo, só pode ter sua dormência quebrada no intestino delgado de um canídeo nativo do Cerrado – um lobo guará, uma raposa. Como esses animais estão em extinção, fica cada vez mais difícil quebrar a dormência de um araticum, que é uma anonácea [família de plantas que inclui também a graviola e a ata (fruta-do-conde), entre outras].
As abelhas europeias e africanas são recentes, foram introduzidas no século passado. O professor Warwick Kerr, que introduziu a abelha africana no Brasil, na década de 1950, ainda é vivo e atua na Universidade Federal de Uber­lândia (UFU). São boas produtoras de mel, mas não estão adaptadas para fazer a polinização das plantas do Cerrado. As abelhas nativas do Cerrado, que não tem ferrão e são chamadas de meliponinas – jataí, mandaçaia, uruçu – eram os maiores agentes polinizadores naturais, juntamente com os insetos, em função de sua anatomia. Hoje estão praticamente extintas, como esses insetos, pelo uso de herbicidas e outros tipos de veneno, que combatiam pragas de vegetações exóticas em lavouras e pastagens. Quando se utiliza o pesticida para extinguir essas pragas também se mata o inseto nativo, que é polinizador das plantas do Cerrado. Por isso, se encontram muitas plantas nativas sem fruto, por não terem sido polinizadas.

A flora do Cerrado é geralmente desprezada. O que ela representa, de fato?
Nós vivemos em meio à mais diversificada flora do planeta. O Cerrado contém a maior biodiversidade florística. Isso não está na Amazônia, nem na Mata Atlântica, nem em uma savana africana ou em uma savana australiana. Nem qualquer outro ambiente da Terra. São 12.365 plantas catalogadas no Cerrado. Só as que conhecemos. A cada expedição que fazemos, cada vez que vamos a campo, pelo menos 50 novas espécies são descobertas. Dessas 12.365 plantas conhecidas, somos capazes de multiplicar em viveiro apenas 180. Isso é cerca de 1,5% do total, quase nada em relação a esse universo. E só conseguimos fazer mudas de plantas arbóreas.
Para as demais, que são extremamente importantes para o equilíbrio ecológico, para o sequestro de carbono e para a captação de água, não temos tecnologia para fazer mudas. Por exemplo, o capim-barba-de-bode, a canela-de-ema, a arnica, o tucum-rasteiro, esses dois últimos com raízes extremamente complexas. Se tirarmos um tucum-rasteiro, que está no máximo 40 centímetros acima do nível do solo, e olharmos seu tronco, vamos encontrar milhares ou até milhões de raízes grudados naquele tronco. Se tirarmos um pedaço pequeno dessas raízes e levarmos ao microscópio, veremos centenas de radículas que saem delas. Uma pequena plantinha com um sistema radicular extremamente complexo, que retém a água e alimenta os diversos ambientes do Cerrado. É algo que não se consegue reproduzir em viveiro, porque não há tecnologia. O que conseguimos é em relação a algumas plantas arbóreas.
Outro aspecto que indica que o Cerrado já entrou em vias de extinção é que as plantas do Cerrado são de crescimento muito lento. Uma canela-de-ema atinge a idade adulta com mil anos de idade. O capim-barba-de-bode fica adulto com 600 anos. Um buriti atinge 30 metros de altura com 500 anos. Nossas veredas – que existiam em abundância até pouco tempo – eram compostas de plantas “nenês” quando Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil, estavam nascendo naquela época e sua planta mais comum, o buriti, está hoje com 25 metros, 30 metros.

Mas a tecnologia e a biotecnologia não fornecem nenhuma alternativa para mudar esse quadro?

Para se ter ideia da complexidade, vamos tomar o caso do buriti, que só pode ser plantado em uma lama turfosa, cheia de turfa, com muita umidade. Se o solo estiver seco, o buriti não vai vingar ali.
Mas, mesmo se conseguíssemos plantar – o que é difícil, porque não existe mais o solo apropriado –, aquele buriti só atingiria a idade adulta e dar frutos depois de muitos séculos. Então, não tem como tentar dizer que se pode usar técnicas para revitalizar o Cerrado. Isso é praticamente impossível.
A interface do Cerrado, para falar em uma linguagem moderna, não é amigável para o uso da tecnologia conhecida. Não tem como acelerar o crescimento de um buriti como se faz com a soja.
Não dá para fazer isso, até porque as plantas do Cerrado convivem com uma porção de outros elementos que, para outras plantas, seriam nocivos. Por exemplo, certos fungos convivem em simbiose com espécies do Cerrado. Um simples fungo pode impedir a biotecnologia. Seria possível desenvolver, por meio de tecidos, tal planta em laboratório. Mas sem aquele fungo a planta não sobrevive. E com o fungo, mas em laboratório, ela também não se desenvolve. Ou seja, é algo extremamente complicado, mais do que podemos imaginar.

Mesmo que os mais pragmáticos menosprezem a importância de um determinado animal ou uma “plantinha” em relação a uma obra portentosa, como uma hidrelétrica, há algo que está sob ameaça com o fim do Cerrado, como a água. Isso é algo básico para todos. A contradição é que o Cerrado – assim como a caatinga e os pampas – não são ainda patrimônio nacional, ao contrário da Mata Atlântica, o Pantanal e a Amazônia. Há uma lei, a PEC 115/95 [proposta de emenda constitucional], de autoria do então deputado Pedro Wilson (PT-GO), que pede essa isonomia há quase 20 anos. Essa lei ajudaria alguma coisa?

Na prática, não poderia ajudar mais em nada, porque o que tinha de ser ocupado do Cerrado já foi. O bioma já chegou em seu limiar máximo de ocupação. Mas o governo brasileiro é tão maquiavélico e inteligente que, para evitar maiores discussões, no ano passado redesenhou todo o mapa ambiental brasileiro. Dessa forma, separou o Pantanal do Cerrado – embora o primeiro seja um subsistema do segundo –, transformou-o em patrimônio nacional e a área do Cerrado já ocupada foi ignorada e incluída no plano de desenvolvimento como área de expansão da fronteira agrícola. Ou seja, o Cerrado, em sua totalidade, já foi contemplado para não ser protegido.

O que os parques nacionais poderiam agregar em uma política de subsistência do Cerrado?

Existe um manejo inadequado dos parques existentes na região do Cerrado. Esse manejo começa com o fogo, quando se cria uma brigada para evitar incêndios no Parque Nacional das Emas, por exemplo. O fogo natural é importante para a preservação do Cerrado. Ora, se se trabalha com o intuito de preservar o Cerrado é preciso conviver com o fogo; agora, se se trabalha com a visão do agrônomo, o fogo é prejudicial, porque acentua o oligotrofismo do solo. O Cerrado precisa desse solo oligotrófico, mas, se o fogo é eliminado, as condições do solo serão alteradas e a planta nativa vai deixar de existir, porque o solo vai adquirir uma melhoria e aquela planta precisa de um solo pobre. Assim, quando se barra o uso do fogo em um parque de Cerrado, o trabalho se dá não com a noção de preservação do ambiente, mas dentro da visão da agricultura. Raciocina-se como agrônomo, não como biólogo.
Outra questão nos parques é que o entorno dos parques já foi tomado por vegetações exóticas. Entre essas vegetações existe o brachiaria, que é uma gramínea extremamente invasora que, à medida que espalha suas sementes, alcança até as áreas dos parques, tomando o lugar das gramíneas nativas. No Parque Nacional das Emas já temos gramínea que não é nativa, o que faz com que haja também vegetação arbórea, de porte maior, também não nativa. Os animais, em função do isolamento do parque, não têm mais contato com áreas naturais, como os barreiros, que forneceriam a eles cálcio e sais naturais. Quando encontramos um osso de animal morto em um parque vemos que está sem calcificação completa, porque falta esse elemento, que é obtido lambendo cinzas queimadas ou visitando os barreiros, que são salinas naturais em que existe esse o elemento. Geralmente há poucos barreiros nos parques, o que torna mais difícil a sobrevivência do animal, que acaba entrando em vias de extinção, o que está acontecendo.
Não há, em nenhum parque nacional criado, aumento da vegetação nativa ou da fauna nativa. O que há é a diminuição dos caracteres nativos daquela vegetação, bem como da fauna. Isso prova que esse isolamento não trouxe benefícios. O que poderia funcionar seria se essas áreas de preservação estivessem interligadas por meio de corredores de migração faunística. Isso evitaria uma série de erros cometidos quando se delimita uma área.

Mas, pelo que o sr. diz, hoje isso seria impossível.

Praticamente impossível, por­que as matas ciliares, que de­ve­riam servir como corredores ecológicos, de migração, foram totalmente degradadas. A maioria dos rios foi ocupada, em suas margens, por ambientes urbanos, com a presença do homem, que é um elemento extremamente predatório. Mais que isso: os sistemas agrícolas implantados chegam, em alguns locais, até a margem de córregos e rios, impedindo, também, a existência desses corredores de migração.
Fica, assim, um cenário praticamente inviável. É triste falar isso , mas, na realidade, falamos baseados em dados científicos, no que observamos. Sou o amante número um do Cerrado. Gostaria que ele existisse durante milhões e milhões de anos ainda, mas infelizmente não é isso que vemos acontecer. Se, por exemplo, você observar as nascentes dos grandes rios, verá que elas ou estão secando ou estão migrando cada vez mais para áreas mais baixas. Quando isso ocorre, é sinal de que o lençol que abastece essa nascente está rebaixando.
Observe, por exemplo, o caso das nascentes do Rio São Francis­co, na Serra da Canastra; o caso das nascentes do Rio Araguaia ou do Rio Tocantins, que tem o Rio Uru em sua cabeceira mais alta. A cada dia que passa as nascentes vão descendo mais. Vai ocorrer o dia em que chegarão ao nível de base do lençol que as abastece e desaparecerão.

Ao mesmo tempo em que o­cor­re esse fenômeno, temos um au­mento rápido do consumo de água.
Há o aumento da população. Mas, além do mais, o Cerrado entrou, nos últimos anos, por um processo extremamente complicado, que chamamos de desterritorialização. O grande capital chegou às áreas do Cerrado e expulsou os posseiros que lá moravam, por meio da falsificação de documentos, da negociata com cartórios e com políticos. Com a grilagem, adquiriu milhares de hectares e tirou os moradores antigos da região. Isso desestruturou comunidades inteiras.

Isso ainda ocorre em Goiás e em diversos lugares?
Ocorreu e está ocorrendo. E o que isso provoca? O aumento das cidades. Quase não há mais cidadezinhas na região do Cerrado, elas são de médio ou grande porte, porque a população do campo, desamparada e sem terra, veio para a zona urbana. Essas pessoas vêm buscar abrigo na cidade, que oferece a eles algum tipo de serviço. Na cidade, se transformam em outro tipo de categoria social: os sem-teto. Estes vivem aqui e ali, ocupando as áreas mais periféricas da cidade. Vão ocupar planícies de inundação, beiras de córregos, entre outros ambientes desorganizados.
Um homem que vive em um ambiente assim, que nasce, é criado e compartilha dessa desorganização, terá uma mente que tende a ser desorganizada. Ou seja, ao fazer a desterritorialização trabalhamos contra a formação de pessoas sadias. Formamos pessoas transtornadas, mutiladas mentalmente, ocupando as periferias. Não existe plano diretor que dê conta de acompanhar o desenvolvimento das áreas urbanas no Brasil, porque a cada dia chegam novas famílias nessas áreas.
Crescendo em um ambiente desorganizado, sem perspectivas para o futuro, essas pessoas acabam caindo em neuroses para a fuga. A neurose mais comum desse tipo é o uso de drogas. Acabam cometendo o que chamamos de atos ilícitos, mas provocados por uma situação socioeconômica de limitação, vivendo em ambientes precários. Essas pessoas constroem sua vida nesses locais, formam famílias e passam anos ou décadas nesses locais. Só que um dia vem um fenômeno natural qualquer – como El Niño ou La Niña – que, por exemplo, acomete aquele local com uma quantidade muito maior de chuva. Então, o córrego enche e encontra, em sua área de inundação, os barracos daquela população. Aí começa a tragédia urbana, com desabrigados e mortos. Aumenta, ainda mais, o processo de sofrimento no qual estão inseridas essas populações.
Hoje vejo muitos profissionais, principalmente arquitetos, falando em mobilidade urbana. Falam em construir monotrilhos, linhas específicas para ônibus, corredores para bicicletas, mas ninguém toca na ferida: o problema não está ali, mas na desestruturação do homem do campo. Quanto mais se desestrutura o campo, mais pessoas vêm para a cidade, que não consegue absorvê-las, por mais que se implantem linhas novas, estações e bicicletários. O problema está no drama do campo, não na cidade.

Antigamente, se usava a expressão “fixação do homem no campo”. Isso parece que ficou para trás na visão dos governos.

Desistiram porque o que manda é o grande capital. Os bancos estatais se alegram com as safras recordes, fazem propaganda disso. Eles patrocinam os grandes proprietários, só que estes não têm grande quantidade de funcionários, têm uma agricultura intensiva, mecanizada. Isso não ajuda de forma alguma a manter as pessoas na zona rural.

Uma notícia grave é a extinção do Cerrado. Outra, tão ou mais grave, que – pelo que o sr. diz – já pode ser dada, é que em pouco tempo não teremos mais água. A crise da água no Brasil é uma bomba-relógio?
A extinção do Cerrado envolve também a extinção dos grandes mananciais de água do Brasil, porque as grandes bacias hidrográficas “brotam” do Cerrado. O Rio São Francisco é uma consequência do Cerrado: ele nasce em área de Cerrado e é alimentado, em sua margem esquerda, por afluentes do Cerrado: Rio Preto, que nasce em Formosa (GO); Rio Paracatu (MG); Rio Carinhanha, no Oeste da Bahia; Rio Formoso, que nasce no Jalapão (TO) e corre para o São Francisco. Se há a degradação do Cerrado, não há rios para alimentar o São Francisco. Você po­de contar no mínimo dez afluentes por ano desses grandes rios que estão desaparecendo.

Como o sr. analisa a transposição do Rio São Francisco?
É um ato muito mais político do que científico. Ela atende muito mais a interesses políticos de grandes proprietários do Nordeste na área da Caatinga, no sertão nordestino. A transposição está sendo feita em dois canais, um norte, com 750 quilômetros e outro, leste, com pouco mais de 600 quilômetros. A água é sugada da barragem de Sobradinho (BA), através de uma bomba, para abastecer esses canais, com 10 metros de profundidade e largura de 25 metros. Ao fazer essa obra, se altera toda a mecânica do São Francisco: o rio, que corria lento, passa a correr mais rapidamente, porque está tendo sua água sugada. Seus afluentes, então, também passam a seguir mais velozes. Isso acelera o processo de assoreamento e de erosão.
Consequente­mente, aceleram a morte dos afluentes. Fazer a transposição do São Francisco simplesmente é estabelecer uma data para a morte do rio, para seu desaparecimento total. Podem até atender interesses econômicos e sociais de maneira efêmera, em curto prazo, mas em dez anos acabou tudo.

E será um processo rápido, assim?

Sim, é um processo de décadas. Basta ver o Rio Meia Ponte, na altura do Setor Jaó. Onde havia uma bonita cachoeira, na antiga barragem, há só um filete d’água. O nível da água do Meia Ponte é o mesmo do Córrego Botafogo há décadas atrás. Este praticamente não existe mais, a não ser por uma nascente muito rica no Jardim Botânico, que ainda o alimenta. Mas ele só parece mesmo exis­tir quando as chuvas o en­chem rapidamente. Mas, no outro dia, ele vira novamente um filete.

Goiânia foi planejada em função também dos cursos d’água. Tendo em vista o que ocorre hoje, podemos dizer que ela é, então, o cenário de uma tragédia hidrográfica?
Eu não diria que apenas Goiânia está realmente dessa forma. Mas foi toda uma política de ocupação do centro e do interior do Brasil que motivou essa ocupação desordenada, desde a época da Fundação Brasil Central, da Expedição Roncador–Xingu, depois a construção de Goiânia e de Brasília, a divisão de Mato Grosso e a criação do Tocan­tins. Isso é fruto do capital dinâmico que transforma a realidade. Vem uma urbanização rápida de áreas de campo, aumentando as ilhas de calor e, consequentemente, pela pavimentação, impedindo que as águas das chuvas se infiltrem para alimentar os mananciais que deram origem a essas mesmas cidades. Se continuar dessa forma, com esse tipo de desordenamento, podemos prever grandes colapsos sociais e econômicos no Centro-Oeste do Brasil. E não só aqui, mas nas áreas que aqui brotam.

O que significa quase toda a área do Brasil, não?
Sim, até mesmo a Amazônia. O Rio Amazonas é alimentado por três vetores: as águas da Cordilheira dos Andes, que é um sistema de abastecimento extremamente irregular; as águas de sua margem esquerda, principalmente do Solimões, que também é irregular, em que duas estiagens longas podem expor o assoreamento, ilhas de areias – ali foi um deserto até bem pouco tempo, chamado Deserto de Óbidos. Ou seja, o Amazonas é alimentado mesmo pelos rios que nascem no Cerrado, como Teles Pires (São Manuel), Xingu, Tapajós, Madeira, Araguaia, Tocantins. Estes caem quase na foz do Amazonas, mas contribuem com grande parte de seu volume. Ou seja, temos o São Francisco, já drasticamente afetado; o Amazonas, também afetado; e a Bacia do Paraná, afetada quase da mesma forma que o São Francisco, provavelmente com período de vida muito curto.

Será um processo tão rápido assim?
Uma vez que se inicia tal processo de degradação e de diminuição drástica do nível dos lençóis, isso é irreversível. Em alguns casos duram algumas décadas; em outros, até menos do que isso. Temos exemplos clássicos no mundo de transposições de rios que não deram certo e até secaram mares inteiros. No Mar de Aral, no Leste Europeu, há navios ancorados em sal. Sua drenagem é endorreica, fechada, sem saída para o oceano.
A União Soviética, na ânsia de se tornar autossuficiente na produção de algodão, fez a transposição dos dois rios que abasteciam o mar. Resultado: no prazo de uma década, as plantações não vingaram, o mar secou e uma grande quantidade de tempestades de poeira e sal afetam 30 milhões de pessoas, causando doenças respiratórias graves, incluindo o câncer.
Com nossos rios, acontecerá o mesmo processo. A diferença é que o processo de ocupação aqui foi relativamente recente, a partir dos anos 1970. São 40 e poucos anos. Ou seja: em menos de meio século, se devastou um bioma inteiro. Não acabou totalmente porque ainda há um pouco de água. Mas, quando isso acabar, imagine as convulsões sociais que ocorrerão. Enquanto se está na fartura, você é capaz de repartir um copo d’água com o irmão; mas, no dia da penúria, ninguém repartirá. Isso faz parte da natureza do ser humano, que é essencialmente egoísta. Isso está no princípio da evolução da humanidade. A Igreja Católica chama isso de “pecado original”, mas nada mais é do que o egoísmo, apossar-se de determinados bens e impedir que outros usufruam deles. Isso já levou outros povos e raças à extinção. E pode nos levar também à extinção.
Até bem pouco tempo tínhamos duas humanidades: o homem-de-neanderthal, o Homo sapiens neanderthalensis; e o Homo sapiens sapiens. Hoje podemos falar também em duas humanidades: uma humanidade subdesenvolvida, tentando soerguer em meio a um lodo movediço; e outra humanidade, que nada na opulência. A questão é que, se essa situação persistir, brevemente teremos a pós e a sub-humanidade.

É um cenário doloroso.

É doloroso, mas são os dados que a ciência mostra. Tem jeito, tem perspectiva para um futuro melhor? Possivelmente, a saída esteja na pesquisa. Mas uma pesquisa precisa de um longo tempo para que apareçam resultados positivos. E nossas universidades não incentivam a pesquisa, o que é muito triste, porque essa é a essência de uma universidade.

O sr. vê, em algum lugar do mundo, trabalhos e pesquisas pensando em um mundo mais sustentável?
Não. O que existe é muito localizado e incipiente. Não tem grande repercussão. Mas, mesmo se fossem proveitosas, jamais poderiam ser aplicadas ao Cer­rado, que é um ambiente muito peculiar. Teria de haver pesquisa dirigida especialmente para nosso bioma. Como recuperar uma nascente de Cerrado? Eu não sei dizer. Um engenheiro ambiental também não lhe dará resposta. Nenhum cientista brasileiro sabe a resposta, porque não temos pesquisas sobre isso. Talvez poderíamos ter um futuro melhor se houvesse investimentos em pesquisa.

E a educação ocupa que papel nesse contexto sombrio?

Nós, como educadores, deveríamos pensar mais nisso – e eu penso: talvez ainda seja tempo de salvar o que ainda resta, mas se não dermos uma guinada muito violenta não terá como fazer mais nada. É preciso haver real mudança de hábitos e mudar a forma de observar os bens patrimoniais do planeta e da nossa região. A água tinha de ser uma questão de segurança nacional. A vegetação nativa, da mesma forma.
Os bens naturais teriam de ser tratados assim também, porque deles depende o bem-estar das futuras gerações. Mas isso só se consegue com investimento muito alto em educação, mudando mentalidade de educadores. As escolas têm de trabalhar a consciência e não apenas o conhecimento. Uma coisa é conhecer o problema; outra, é ter consciência do problema. A consciência exige um passo a mais. Exige atitude revolucionária e radical. Ou mudamos radicalmente ou plantaremos um futuro cada vez pior para as gerações que virão.

Fonte: VIOMUNDO
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