segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Ahhhhhhh! Eu Tô Maluco


Acordei doente mental

A quinta edição da “Bíblia da Psiquiatria”, o DSM-5, transformou numa “anormalidade” ser “normal”

ELIANE BRUM
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A poderosa American Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria – APA) lançou neste final de semana a nova edição do que é conhecido como a “Bíblia da Psiquiatria”: o DSM-5. E, de imediato, virei doente mental. Não estou sozinha. Está cada vez mais difícil não se encaixar em uma ou várias doenças do manual. Se uma pesquisa já mostrou que quase metade dos adultos americanos tiveram pelo menos um transtorno psiquiátrico durante a vida, alguns críticos renomados desta quinta edição do manual têm afirmado que agora o número de pessoas com doenças mentais vai se multiplicar. E assim poderemos chegar a um impasse muito, mas muito fascinante, mas também muito perigoso: a psiquiatria conseguiria a façanha de transformar a “normalidade” em “anormalidade”. O “normal” seria ser “anormal”.
A nova edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) exibe mais de 300 patologias, distribuídas por 947 páginas. Custa US$ 133,08 (com desconto) no anúncio de pré-venda no site da Amazon. Descobri que sou doente mental ao conhecer apenas algumas das novas modalidades, que tem sido apresentadas pela imprensa internacional. Tenho quase todas. “Distúrbio de Hoarding”. Tenho. Caracteriza-se pela dificuldade persistente de se desfazer de objetos ou de “lixo”, independentemente de seu valor real. Sou assolada por uma enorme dificuldade de botar coisas fora, de bloquinhos de entrevistas dos anos 90 a sapatos imprestáveis para o uso, o que resulta em acúmulos de caixas pelo apartamento. Remédio pra mim. “Transtorno Disfórico Pré-Menstrual”, que consiste numa TPM mais severa. Culpada. Qualquer um que convive comigo está agora autorizado a me chamar de louca nas duas semanas anteriores à menstruação. Remédio pra mim. “Transtorno de Compulsão Alimentar Periódica”. A pessoa devora quantidades “excessivas” de comida num período delimitado de até duas horas, pelo menos uma vez por semana, durante três meses ou mais. Certeza que tenho. Bastaria me ver comendo feijão, quando chego a cinco ou seis pratos fundo fácil. Mas, para não ter dúvida, devoro de uma a duas latas de leite condensado por semana, em menos de duas horas, há décadas, enquanto leio um livro igualmente delicioso, num ritual que eu chamava de “momento de felicidade absoluta”, mas que, de fato, agora eu sei, é uma doença mental. Em vez de leite condensado, remédio pra mim. Identifiquei outras anomalias, mas fiquemos neste parágrafo gigante, para que os transtornos psiquiátricos que me afetam não ocupem o texto inteiro.
Há uma novidade mais interessante do que as doenças recém inventadas pela nova “Bíblia”. Seu lançamento vem marcado por uma controvérsia sem precedentes. Se sempre houve uma crítica contundente às edições anteriores, especialmente por parte de psicólogos e psicanalistas, a quinta edição tem sido atacada com mais ferocidade justamente por quem costumava não só defender o manual, como participar de sua elaboração. Alguns nomes reluzentes da psiquiatria americana estão, digamos, saltando do navio. Como não há cordeiros nesse campo, movido em parte pelos bilhões de dólares da indústria farmacêutica, é legítimo perguntar: perceberam que há abusos e estão fazendo uma “mea culpa” sincera antes que seja tarde, ou estão vendo que o navio está adernando e querem salvar o seu nome, ou trata-se de uma disputa interna de poder em que os participantes das edições anteriores foram derrotados por outro grupo, ou tudo isso junto e mais alguma coisa?

Não conheço os labirintos da APA para alcançar a resposta, mas acredito que vale a pena ficarmos atentos aos próximos capítulos. Por um motivo acima de qualquer suspeita: o DSM influencia não só a saúde mental nos Estados Unidos, mas é o manual utilizado pelos médicos em praticamente todos os países, pelo menos os ocidentais, incluindo o Brasil. É também usado como referência no sistema de classificação de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). É, portanto, o que define o que é ser “anormal” em nossa época – e este é um enorme poder. Vale a pena sublinhar com tinta bem forte que, para cada nova patologia, abre-se um novo mercado para a indústria farmacêutica. Esta, sim, nunca foi tão feliz – e saudável.
O crítico mais barulhento do DSM-5 parece ser o psiquiatra Allen Frances, que, vejam só, foi o coordenador da quarta edição do manual, lançada em 1994. Professor emérito da Universidade de Duke, ele tem um blog no Huffington Post que praticamente usa apenas para detonar a nova Bíblia da Psiquiatria. Quando a versão final do manual foi aprovada, enumerou o que considera as dez piores mudanças da quinta edição, num texto iniciado com a seguinte frase: “Esse é o momento mais triste nos meus 45 anos de carreira de estudo, prática e ensino da psiquiatria”. Em carta ao The New York Times, afirmou: “As fronteiras da psiquiatria continuam a se expandir, a esfera do normal está encolhendo”.
Entre suas críticas mais contundentes está o fato de o DSM-5 ter transformado o que chamou de “birra infantil” em doença mental. A nova patologia é chamada de “Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor” e atingiria crianças e adolescentes que apresentassem episódios frequentes de irritabilidade e descontrole emocional. No que se refere à patologização da infância, o comentário mais incisivo de Allen Frances talvez seja este: “Nós não temos ideia de como esses novos diagnósticos não testados irão influenciar no dia a dia da prática médica, mas meu medo é que isso irá exacerbar e não amenizar o já excessivo e inapropriado uso de medicação em crianças. Durante as duas últimas décadas, a psiquiatria infantil já provocou três modismos — triplicou o Transtorno de Déficit de Atenção, aumentou em mais de 20 vezes o autismo e aumentou em 40 vezes o transtorno bipolar na infância. Esse campo deveria sentir-se constrangido por esse currículo lamentável e deveria engajar-se agora na tarefa crucial de educar os profissionais e o público sobre a dificuldade de diagnosticar as crianças com precisão e sobre os riscos de medicá-las em excesso. O DSM-5 não deveria adicionar um novo transtorno com o potencial de resultar em um novo modismo e no uso ainda mais inapropriado de medicamentos em crianças vulneráveis".
A epidemia de doenças como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) tem mobilizado gestores de saúde pública, assustados com o excesso de diagnósticos e a suspeita de uso abusivo de drogas como Ritalina, inclusive no Brasil. E motivado algumas retratações por parte de psiquiatras que fizeram seu nome difundindo a doença. Uma reportagem do The New York Times sobre o tema conta que o psiquiatra Ned Hallowell, autor de best-sellers sobre TDAH, hoje arrepende-se de dizer aos pais que medicamentos como Adderall e outros eram “mais seguros que Aspirina”. Hallowell, agora mais comedido, afirma: “Arrependo-me da analogia e não direi isso novamente”. E acrescenta: “Agora é o momento de chamar a atenção para os perigos que podem estar associados a diagnósticos displicentes. Nós temos crianças lá fora usando essas drogas como anabolizantes mentais – isso é perigoso e eu odeio pensar que desempenhei um papel na criação desse problema”. No DSM-5, a idade limite para o aparecimento dos primeiros sintomas de TDAH foi esticada dos 7 anos, determinados na versão anterior, para 12 anos, aumentando o temor de uma “hiperinflação de diagnósticos”.
Pensar sobre a controvérsia gerada pelo nova “Bíblia da Psiquiatria” é pensar sobre algumas construções constitutivas do período histórico que vivemos. Construções culturais que dizem quem somos nós, os homens e mulheres dessa época. A começar pelo fato de darmos a um grupo de psiquiatras o poder – incomensurável – de definir o que é ser “normal”. E assim interferir direta e indiretamente na vida de todos, assim como nas políticas governamentais de saúde pública, com consequências e implicações que ainda precisam ser muito melhor analisadas e compreendidas. Sem esquecer, em nenhum momento sequer, que a definição das doenças mentais está intrinsicamente ligada a uma das indústrias mais lucrativas do mundo atual.
Parte dos organizadores não gosta que o manual seja chamado de “Bíblia”. Mas, de fato, é o que ele tem sido, na medida em que uma parcela significativa dos psiquiatras do mundo ocidental trata os verbetes como dogmas, alterando a vida de milhões de pessoas a partir do que não deixa de ser um tipo de crença. Talvez seja em parte por isso que o diretor do National Institute of Mental Health (Instituto Nacional de Saúde Mental – NIMH), possivelmente a maior organização de pesquisa em saúde mental do mundo, tenha anunciado o distanciamento da instituição das categorias do DSM-5. Thomas Insel escreveu em seu blog que o DSM não é uma Bíblia, mas no máximo um “dicionário”: “A fraqueza (do DSM) é sua falta de fundamentação. Seus diagnósticos são baseados no consenso sobre grupos de sintomas clínicos, não em qualquer avaliação objetiva em laboratório. (...) Os pacientes com doenças mentais merecem algo melhor”. O NIMH iniciou um projeto para a criação de um novo sistema de classificação, incorporando investigação genética, imagens, ciência cognitiva e “outros níveis de informação” – o que também deve gerar controvérsias.
A polêmica em torno do DSM-5 é uma boa notícia. E torço para que seja apenas o início de um debate sério e profundo, que vá muito além da medicina, da psicologia e da ciência. “Há pelo menos 20 anos tem se tratado como doença mental quase todo tipo de comportamento ou sentimento humano”, disse a psicóloga Paula Caplan à BBC Brasil. Ela afirma ter participado por dois anos da elaboração da edição anterior do manual, antes de abandoná-la por razões “éticas e profissionais”, assim como por ter testemunhado “distorções em pesquisas”. Escreveu um livro com o seguinte título: “Eles dizem que você é louco: como os psiquiatras mais poderosos do mundo decidem quem é normal”.
A vida tornou-se uma patologia. E tudo o que é da vida parece ter virado sintoma de uma doença mental. Talvez o exemplo mais emblemático da quinta edição do manual seja a forma de olhar para o luto. Agora, quem perder alguém que ama pode receber um diagnóstico de depressão. Se a tristeza e outros sentimentos persistirem por mais de duas semanas, há chances de que um médico passe a tratá-los como sintomas e faça do luto um transtorno mental. Em vez de elaborar a perda – com espaço para vivê-la e para, no tempo de cada um, dar um lugar para essa falta que permita seguir vivendo –, a pessoa terá sua dor silenciada com drogas. É preciso se espantar – e se espantar muito.
Vale a pena olhar pelo avesso: quem são essas pessoas que acham que o “normal” é superar a perda de uma mãe, de um pai, de um filho, de um companheiro rapidamente? Que tipo de ser humano consegue essa proeza? Quem seríamos nós se precisássemos de apenas duas semanas para elaborar a dor por algo dessa magnitude? Talvez o DSM-5 diga mais dos psiquiatras que o organizaram do que dos pacientes.
Há ainda mais uma consequência cruel, que pode provocar muito sofrimento. Ao transformar o que é da vida em doença mental, os defensores dessa abordagem estão desamparando as pessoas que realmente precisam da sua ajuda. Aquelas que efetivamente podem ser beneficiadas por tratamento e por medicamentos. Se quase tudo é patologia, torna-se cada vez mais difícil saber o que é, de fato, patologia. Por sorte, há psiquiatras éticos e competentes que agem com consciência em seus consultórios. Mas sempre foi difícil em qualquer área distinguir-se da manada – e mais ainda nesta área, que envolve o assédio sedutor, lucrativo e persistente dos laboratórios.
Se as consequências não fossem tão nefastas, seria até interessante. Ao considerar que quase tudo é “anormal”, os organizadores do manual poderiam estar chegando a uma concepção filosófica bem libertadora. A de que, como diria Caetano Veloso, “de perto ninguém é normal”. E não é mesmo, o que não significa que seja doente mental por isso e tenha de se tornar um viciado em drogas legais para ser aceito. Só se pode compreender as escolhas de alguém a partir do sentido que as pessoas dão às suas escolhas. E não há dois sentidos iguais para a mesma escolha, na medida em que não existem duas pessoas iguais. A beleza do humano é que aquilo que nos une é justamente a diferença. Somos iguais porque somos diferentes.
Esse debate não pertence apenas à medicina, à psicologia e à ciência, ou mesmo à economia e à política. É preciso quebrar os monopólios sobre essa discussão, para que se torne um debate no âmbito abrangente da cultura. É de compreender quem somos e como chegamos até aqui que se trata. E também de quem queremos ser. A definição do que é “normal” e “anormal” – ou a definição de que é preciso ter uma definição – é uma construção cultural. E nos envolve a todos. Que cada vez mais as definições sobre normalidade/anormalidade sejam monopólios da psiquiatria e uma fonte bilionária de lucros para a indústria farmacêutica é um dado dos mais relevantes – mas está longe de ser tudo.
E não, eu não acordei doente mental. Só teria acordado se permitisse a uma Bíblia – e a pastores de jaleco – determinar os sentidos que construo para a minha vida.
Fonte: REVISTA PRANA

Ahhh! eu tô maluco. Ahhhh! eu tô maluco. 
Quem não se lembra dessa canção de Claudinho e Bochecha?
Raul Seixas, o maluco beleza, lá pelo década de 1970 escreveu uma canção em que ele teria sido preso apenas porque estava parado em algum lugar e pensando. 
Hoje, pensar é algo perigoso e pode  sugerir algum tipo de doença mental gravísssima.
Depois dos anos da década de 1960 quando os jovens tentaram subverter toda  a ordem vigente, deu início a um processo de reconstrução de valores , práticas, códigos e percepções, de maneira que os ideais daqueles anos fossem criteriosamente eliminados, e mais, substituídos por valores ainda mais retrógrados do que aqueles que foram motivo de questionamentos e que predominavam nos anos de 1960.
No mundo atual do capitalismo selvagem e turbinado, o lucro incessante e cada vez maior é a regra dominante. Para tanto  o poder econômico  e as corporações se apropriaram das principais formas de construção do comportamento social. 
Leis, doenças, hábitos de nutrição, produtos de entretenimento, dentre outros, são definidos e reproduzidos em função dos interesses das corporações, independente se são saudáveis ou não para as pessoas.
Assim, as doenças mentais ganham um impulso poderoso, rotulando praticamente qualquer pessoa como um doente mental, ou potencialmente propício para o desenvolvimento de uma patologia  associada a psiquê. 
Convido o caro e atento leitor a correr um risco gravísssimo de pensar e refletir sobre o assunto. 
Diante dos fatos as corporações empenhadas no crescimento ilimitado de seus lucros,chegaram ao ponto, de forma racional e orquestrada, de praticamente definir como doente mental toda e qualquer pessoa. Como escreveu a autora do artigo acima, o que era normal, passa a ser anormal, e mais requer um tratamento intensivo com medicamentos de preferência com tarja preta. Lucro garantido. Uma simples e normal mudança de humor ( nossos humores se alteram mais ou menos de três em três dias ) e definida como TDRH - transtorno disruptivo de regulação do humor. 
Se o caro e atento leitor que embarcou nessa viagem perigosíssima comigo começar a questionar a bíblia da psiquiatria, provavelmente será diagnosticado com portador de SQCMC - síndrome do questionamento científico mental consolidado. Uma doença grave. 
Nos dias atuais todo e qualquer questionamento sobre o sistema dominante pode indicar algum tipo de patologia. 
Questionar é proibido.
Isso me trouxe uma lembrança de um encontro com um amigo , anos atrás, nas ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro:

- e aí, Venâncio. Tudo bem - perguntei  por conta de uma aproximação frontal inevitável.
- beleza, cara. Especialmente hoje estou bem mais leve - disse com uma expressão de felicidade.
-  éééééé...alguma.... alguma coisa boa na área, perguntei com uma expressão    cheio de dedos.
- boa nada, cara. Excelente. Semana passada dei alta para minha psicanalista.
- como é que é ? Você deu alta prá tua psi ?
- porra , cara. Não aguentava mais. Imagine você que durante meses minha psi vinha me interpretando como alguém que vive questionando tudo, analisando tudo e que issso poderia ser um transtorno...
- não é a essência da psicanálise que o paciente se auto questione, se analise, perguntei interrompendo.
- porra, então. Fiquei meses mostrando prá ela que meu comportamento era normal e que a anormalidade estava na clínica médica dela. Ela ficou puta, e ficamos meses e meses nessa discussão , até que ela assumiu que o problema era dela. Uma vez que ela se conscientizou, achei por bem que era hora de dar alta prá ela.
- ela deve estar agora na fase das costuras , não é, perguntei
- com certeza, e não tenho dúvidas que será uma experiência riquíssima prá ela.
- e você, mermão, que conta de novo ?
- tamo aí, na luta, respondi sem dizer nada
- pô, vamo se encontrar. Pinta aí, cara.
- É, vamo marcar. Aparece lá.

O diálogo acima ilustra muito bem a realidade dos dias atuais. Na área médica, se os profissionais seguirem a risca as orientações das bíblias médicas (todas preparadas para atender os interesses das indústrias farmacêuticas ) podem se perder em meio a diagnósticos delirantes.
Nesse mundo onde todo mundo é maluco, normal é passar cinco horas por dia dentro de uma grande caixa metálica, olhando  ao redor outras caixas de diferentes tamanhos e cores , onde pessoas sózinhas , ou no máximo com um acompanhante, aguardam normalmente a fluidez das máquinas metálicas, de maneira que seu deslocamento se desenrole da forma mais prazeirosa possível, ao som de músicas definidas como corretas, propagandas sem fim, e um noticário sobre decaptações de pessoas, estupros, práticas de canibalismo e outros similarmente normais que são apresentados diariamente. Qualquer  questionamento sobre essa realidade normal é diagnosticado como sendo alguém portador de  TSRCQMNE - transtorno sobre a realidade cognitiva quanto a mobilidade normal estabelecida.
São vários os caos onde a normalidade, se questionada , é motivo de alguma doença. No mundo existem, aproximadamente sete mil ogivas nucleares, entre as conhecias e desconhecidas. Este arsenal, se detonado, é suficiente para destruir toda  a vida no planeta ,e o próprio planeta, pelo menos várias vezes. Qualquer questionamento sobre essa realidade normal, logo é classificada como algo oriundo de alguém com algum déficit intelectual ou mesmo, uma ingenuidade infantil ou sonhadora. Imagine, caro leitor, que este arsenal pode ser comparado, guardando as devidas proporções, a alguém que tenha em sua residência um estoque de 100 mil latas de 500 ml de inseticida. Durante todo o tempo de sua vida, o sujeito matará todos os insetos de sua casa, mais os insetos da casa do vizinho, certamente todos os insetos de todo o condomínio e provavelmente de todos os moradores de seu bairro.
Ainda na normalidade vigente, a poluição ambiental por conta da emissão de uma quantidade absurda de gases tóxicos é responsável por um grande número de doenças nas pessoas. Caso o caro leitor seja um ativista ambiental, e deseje um meio ambiente limpo, pode estar sofrendo de SNDPTEP - síndrome nostálgica depressiva por um planeta Terra de épocas primitivas. E o que dizer da racionalidade um modelo econômico , de produção e  de distribuição que gera uma indecência de lixo pelo mundo, que contribui para a poluição de rios , florestas mares. Nada disso é questionado, pois é compreendido como parte do normal. 
O caro leitor lembra-se da fabricação de uma lata de coca-cola na Inglaterra ? Vale a pena ler novamente: 

A fabricação de uma lata de coca-cola inglesa resulta mais custosa e complicada que a da própria bebida. A bauxita ( minério de alumínio) é extraída na Austrália e transportada para um separador, que, em meia hora purifica uma tonelada de minério, reduzindo-o a meia tonelada de óxido de alumínio. Quando acumulada em quantidade suficiente, o estoque é embarcado em um gigantesco cargueiro que o leva à Suécia ou à Noruega, onde as usinas hidroelétricas fornecem energia barata. Depois de um mês de travessia de dois oceanos, ele passa outros dois meses na fundição. Alí, um processo de duas horas transforma cada meia tonelada de óxido de alumínio em lingotes de dez metros de comprimento. Estes são tratados durante quinze dias antes de embarcar para as laminadoras da Suécia ou da Alemanha. Lá, cada lingote é aquecido a quase 500°C e prensado até atingir a espessura de 0, 30 cm. As folhas resultantes são embaladas em rolos de 10 toneladas e transportadas a um armazem e, depois, a uma laminadora a frio do mesmo país ou de outro, onde voltam a ser prensados até ficar dez vezes mais finas e prontas para a fabricação. O alumínio é então, enviado à Inglaterra, onde se moldam as folhas em forma de latas que, a seguir, são lavadas, secadas, esmaltadas e pintadas com a informação específica do produto. Depois de laqueadas, rebordadas ( ainda não tem tampa), recebem uma camada protetora interna, que evita que o refrigerante as corroa, e passam pela inspeção.  Colocados em paletes, são erguidas pelas empilhadeiras . No momento do uso, são transportadas até a engarrafadora, onde as lavam e limpam uma vez mais e as enchem de água misturada com xarope aromatizado, fósforo, cafeína e gás de dióxido de carbono. O açúcar vem das plantações de beterraba da França depois de passar pelo transporte, a usina, a refinação e o embarque. O fósforo originário de Idaho, nos EUA, é extraído em minas profundas - processo esse que também desenterra o cádmio e o tório radioativo. As empresas de mineração consomem permanentemente a mesma quantidade de eletricidade que uma cidade de 100 mil habitantes a fim de dar qualidade alimentar ao fosfato. A cafeína  vai da indústria química para o fabricante do xarope na Inglaterra. As latas cheias depois de vedadas com uma tampa pop-top de alumínio em um ritmo de 1.500 por minuto, são embaladas em caixas de papelão com as mesmas cores e esquemas promocionais. Estas foram feitas com polpa de madeira oriunda de qualquer lugar, da Suécia à Sibéria e às antigas florestas virgens da Colúmbia Britânica, que são o habitat dos ursos pardos, dos cachorros- do-mato, das lontras e das águias. Uma vez mais empilhadas em paletes, as latas são transportadas ao armazém de distribuição regional, e pouco depois, ao supermercado, onde normalmente as compram em três dias. O consumidor adquire 350 ml de água com açúcar colorida com fosfato, impregnada de cafeína e aromatizada com caramelo. Beber a coca-cola é questão de alguns minutos; jogar a lata fora, de um segundo. Na Inglaterra, os consumidores jogam no lixo 84% das latas, o que significa que a taxa geral de alumínio que jogam fora ( desperdiçada), sem contar as perdas de produção é de 88%. Os EUA ainda obtêm do minério virgem três quintos do alumínio que consomem, gastando vinte vezes mais a energia do metal reciclado sendo a quantidade de alumínio  que jogam fora suficiente para renovar toda a frota de aviões comerciais do país de três em três meses.

Pois é. Tudo isso para fabricar uma lata que vai para o lixo, e mais, que acondiciona um produto que mais se assemelha a um lubrificante de máquina. Produto esse que é amplamente vendido e difundido como sendo um alimento necessário e indispensável para as pessoas , independente de seu paupérrimo valor nutricional. Questionar a lógica de produção da lata, ou mesmo o produto, significa algo muito grave : TQCEEPCPC - transtorno quanto a compreensão da excelência econômica, de produção e  de comercialização de produtos de consumo.
Na racionalidade desse mac mundo feliz tudo é doença, e pelo que se vê as patologias tendem a aumentar em escala exponencial.
Como o lucro dita as regras no mundo, e o lucro não pode parar, vai ficando cada vez mais estreito o limite  do que representa ser normal.
Isso se explica pela fuga ante ao real por parte daqueles que definem o que é real.
Quando a irracionalidade escreve as leis, define a economia, comanda o divertimento, produz os alimentos, de fato são necessárias muitas ogivas nucleares para se defender dos loucos. 

Há um trem cruzando o céu do Brasil, tudo bem?

por: Saul Leblon



Se faltava a cena final do filme a ser feito  sobre o duplo desastre do colapso  neoliberal, tratado com doses adicionais do próprio veneno, a Real Academia Sueca  de Ciências cuidou de providenciá-lo.
Cinco anos após a explosão da bolha imobiliária nos EUA , ela concedeu o Nobel de economia a pesquisas que afrontam as evidências da desordem em curso.
Com graus variados de ênfase, os três economistas laureados  –os americanos Eugene Fama e Lars Peter Hansen e Robert J.Shiller—filiam-se à escola dos mercados racionais.
Intrinsecamente racionais. E esse advérbio de modo tem consequências políticas.
Se há serenidade na loucura, como preconiza o trio, dispensa-se o manicômio das cautelas externas correspondentes.
Sobretudo,  aquelas expressas em protocolos de regulação das finanças pelo Estado, em defesa do interesse público. E do desenvolvimento.
Há um trem cruzando o céu do mundo nesse momento.
Chegará a bom termo, asseguram os arautos das expectativas racionais.
Os passageiros  tem todas as informações disponíveis; saberão fazer as melhores escolhas de pouso e decolagem.
Dispensa-se o anacrônico  trilho estatal.
O comboio poderá rugir e urrar em alguns momentos,  mas no longo prazo a lógica racional  se impõe.
Cabe a ela ordenar  com eficiência os preços dos ‘ativos’( ações, títulos,  imóveis ou outros valores),  fatiados  e pasteurizados para a  precificação diante de seu denominador  comum: o juro.
A Real Academia bem que tentou se precaver das críticas  temperando o prêmio com uma pitada de alerta para o perigo das ‘bolhas’.
Prevê-las é uma especialidade do laureado Robert Shiller, cujos modelos anteciparam o estouro da roleta imobiliária nos EUA.
O ponto, porém, é que o trio, com nuances de tonalidades,  endossa a existência de uma dinâmica intrinsecamente racional que ordena os mercados financeiros. E deles se irradia para o restante da economia e da sociedade.
O 15 de setembro de 2008, com o colapso do Lehman Brothers; as falências em cadeia nos EUA e alhures; os US$ 3,8 trilhões em resgates públicos; os US$ 25 trilhões de perdas para os detentores de ações; os pilantras dos grandes bancos vendendo títulos podres aos próprios clientes, ademais do preço social cobrado, na forma de 30 milhões de desempregados na Europa, o ressurgimento da xenofobia e do fascismo, enfim, tudo isso e muito mais, fica debitado a fatores externos à roleta.
São pequenas refregas na sólida arbitragem diuturna da riqueza fictícia.
Nada que possa macular um organismo devidamente regenerado pela  ‘purga’ de suas excrescências. 
Caso dos viciados em jogatina,  por exemplo. Como Bernard Madoff.
Ou os  hipotecólatras.
Devidamente punidos com a perda da casa e, frequentemente, do emprego também.
Ademais das  nações  indolentes. Que se empanturraram do crédito incompatível com os seus fundamentos
Restituído agora em espécie, com o escalpo da velhice, a fuga dos jovens e o sacrifício do futuro de suas crianças.
É forçoso observar: se os mercados não fossem ‘racionais’, como asseguram os laureados pela academia sueca, como exercer a ferro e fogo a ‘purga’ em curso?
Como o  Tea Party republicano poderia evocar ‘equilíbrio’ orçamentário, depois de uma dívida de US$ 18,6 trilhões, robustecida justamente no resgate dos ditos mercados... racionais?
Como Marina Silva pontificaria sua adesão religiosa ao ‘tripé’ e ao Banco  Central ‘independente’?
O espinho na  garganta da teoria é a danada da  realidade.
Por exemplo. Entre 1959 e 2003, segundo o FMI, a solidez ‘racional’ dos mercados financeiros foi abalada por nada menos que 52 episódios de desmoronamentos prolongados de preços de ações.
Debacles  recorrentes, extremas e espalhadas por duas dezenas de economias.
Como corroborar a ideia de uma racionalidade imanente a ordenar os preços de uma derrocada regular?
Os dados e a experiência vivida  sugerem que se que se trata de um estelionato  classificar  as  bolhas especulativas como aberrações externas às finanças desreguladas.
Elas são intrínsecas à volatilidade financeira e não há nisso juízo moral.
Trata-se de uma característica estrutural.
Estamos falando de um ambiente especulativo imantado de incerteza porque desprovido de qualquer fundamento real de valor que balize seus preços.
Exceto a luta de todos contra todos para maximizar resultados.
A lógica autopropelida  gerou 1929. E explica 2008.
A prevalecer a teoria premiada pela academia sueca, não terá sido a última vez.
Os  impulsos se mantém intactos.
Um ciclo de fastígio do crédito alavanca  as compras de ativos. O valor da papelama  traça espirais ascendentes.
Quando o alvoroço especulativo reduz a demanda por títulos  abusivos e provoca o aumento do custo financeiro, quem precisar de crédito para continuar jogando sofre  um cavalo de pau.
O resto é sabido.
Chega a hora  da ‘purga’ , aquela  que vai higienizar  a ‘racionalidade’ de suas aberrações pontuais.
A economia mundial  vive  há cinco anos sob esse regime de lacto purga.
O processo denominado ‘deflação de ativos’ invade as economias em desenvolvimento pelo canal dos preços das commotidies. E ajusta seu torniquete  elevando os custos de captação de recursos para financiar  o crescimento.
É nesse quadro que a ex-senadora Marina Silva vem expor a sua adesão ao superávit fiscal ‘cheio’.
Lépida e indiferente à complexidade das obrigações  de um Estado democrático, de resistir  à internalização  da ‘purga’  que excreta  emprego , direitos sociais e ameaça a própria democracia.
 aparência de loucura nisso?
Mas é  pura luta de classes.  Travada  na esfera onde os detentores da riqueza cobram em juros seu avocado direito sobre um pedaço do Brasil real.
E o fazem sem trégua. Sobretudo vitaminados pelo ciclo eleitoral.
Diariamente a fatura  é atualizada. E  o valor de cada  fatia é confrontado com o de outras possibilidades . Mais suculentas,  materializáveis no presente ou no futuro;  aqui ou alhures.
Volatilidade e turbulência são inescapáveis ao processo.
É nesses piquetes mutantes que as manadas cegas pela incerteza,  o medo e a usura se  escoiceiam  a postular  mais juros, superávit fiscal  e ‘câmbio livre’ .
De um lado, querem garantia de  ração gorda.
De outro, a porteira aberta para o cassino global e o caminho desimpedido à fuga,  em caso de combustão do pasto nativo.
O Nobel laureou quem enxerga nessa maçaroca alvoroçada a manifestação superior de uma racionalidade autorregulável.
O figurino, visivelmente, não dá conta de vestir o mundo e a luta pelo desenvolvimento nos dias que correm.
Há um trem cruzando o céu do Brasil nesse momento... tudo bem?
‘Chegará a bom termo’, responde  o econeoliberalismo. "Basta que respeitemos as suas asas".

Fonte : CARTA MAIOR

Eita, trem doido !
O trem voador foi avistado em várias cidades brasileiras.
O fenômeno tem atraído multidões. 
Revoar o voar ! Gritam alguns.
O ecotrem voador encanta. 


 
 

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