quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Diários de Botequim - 4 Dr. Célio e Primavera Talibã

No final daquele mês de setembro o assunto não poderia ser outro. Em todos os cantos e centros da cidade uma nova palavra era incorporada no vocabulário do carioca. De sanduiches a calcinhas, tudo era talibã. Teses e mais teses proliferavam pela cidade na tentativa de compreender o atentado contra as torres gêmeas nos EUA. 
- acabou de sair uma calabresa acebolada que está talibã, vai ? peguntou Olsen para um freguês do bar.
No bar, a realidade não era diferente. Em todas as mesas, em que se podia ouvir , o assunto era o atentado e, principalmente, a ousadia desses novos personagens, os talibãs.
- não tira onda comigo não que eu sou talibã, disse um vendedor de rua para um guarda municipal que o perseguia nas imediações do boteco.
Na mesa estavam Miltão, Jadir ,Nelsinho e uma figura estranha, apresentada aos demais por Nelsinho como um tal de Dr. Célio. O tal Doutor era de fato muito estranho. De estatura mediana, e com uma aparência de meia idade consolidada, tinha uma face clara, com uma cor pálida e cadavérica, um bigode grisalho com marcas acentuadas de nicotina que também eram bem fortes nos dedos de suas mãos .Durante o período que alí esteve, e que não foi de muito tempo, fumava um cigarro quase que atrás do outro, além de demonstrar muita intimidade com o copo, já que consumiu algumas caipirinhas. Suas mãos eram trêmulas, porém quando se expressava era raro movimentar algum músculo da face. Por vezes lembrava um robô ou um andróide falando. Certamente não teve a empatia de Miltão e Jadir, que tão logo após a saída do Doutor do bar, interpelaram Nelsinho.
- porra, Nelsinho. Que cara esquisito esse conhecido seu, comentou Miltão.
- esquisito é pouco, disse jadir.
- como é que você conheceu esse cara, perguntou Miltão.
- ihhh rapaz, esse cara é prá lá de estranho e ainda dou o azar de encontrar com ele por aí.
- como assim, perguntou Jadir e continuou. Conta esse negócio direito, ô anta.
- vou contar, disse Nelsinho
- pera aí, gritou Miltão e ao mesmo tempo segurou o braço de Olsen que passava ao lado, ordenando-lhe que limpasse a mesa no lugar onde o doutor estava sentado, já que além de estranho o doutor deixou uma sujeira considerável no local.
- limpa aquela porra alí, disse Miltão para Olsen que de imediato deixou o lugar habitável. 
- vai o anta, conta aí, disse miltão para Nelsinho.
- lembra do acidente de carro em que me envolvi há mais ou menos três meses , peguntou Nelsinho
- aquele em que você fez uma merda danada e ainda bateu em dois carros
- não fiz merda nenhuma, a culpa não foi minha, disse Nelsinho demonstrando irritação
- Porra Jadir, pára de perturbar o cara e deixa ele contar, entrou de sola Miltão.
- então, depois do acidente eu fui parar na delegacia com os demais envolvidos, Quando cheguei na delegacia , aquilo estava a maior zona, tinha gente prá caralho lá dentro e demorei um tempo para que o meu caso fosse atendido. Um policial pediu para que nós esperássemos , pois o dia estava movimentado. Fiquei sentado, num banco, aguardando o momento de ser chamado e, ao meu lado estava o tal Doutor também esperando para ser atendido. Ele começou a puxar conversa comigo querendo saber o motivo de eu estar alí. Notei que ele estava bastante deprimido naquele momento e também perguntei o quê fazia alí. Tão logo eu perguntei, o  cara ficou ainda mais deprimido, abaixou a cabeça, os lábios ficaram trêmulos e falou que tinha enfiado a porrada na mulher dele, a ponto da mulher ir parar no hospital. Notei que o cara tinha ficado pior e fiquei com pena dizendo prá ele que casos de traição acontecem, imaginando que ele tivesse sido traído pela mulher. Foi aí que ele, já quase que chorando disse que não tinha sido traição. Logo em seguida ele coclocou a mão no meu ombro, começou a chorar e disse que bateu na mulher porque ela o chamou de feio.
- ihhhhhhhhhhh, interrompeu Jadir. Seu feioso, ai, ai. Isso parece coisa de viado.
- colocou a mão no teu ombro ou fez carinho na nuca, perguntou Jadir
Nelsinho riu e continuou. Então! O cara desabou e começou a chorar. Achei aquilo estranho mas depois disso ele ficou quieto e eu não dei mais conversa, até que fui chamado pelo delegado , resolvi o caso, e não vi mais o cara.
Aí, uma semana depois disso, eu fui ao Fórum para audiência do meu divórcio. Aquele foi um dia terrivel prá mim, porque pela manhã, antes de ir ao Fórum, passei  numa loja prá fazer um crediário e comprar uns eletrodomésticos lá pra casa e , prá minha surpresa , não pude abrir o crediário pos meu nome estava na lista do SPC e do SERASA.  Depois da pesquisa , fui informado que devia-se ao fato de não ter efetuado o pagamento de um cartão de crédito. De fato, como tenho muitos cartões, acabei me enrolando na papelada lá em casa e esqueci de efetuar o pagamento de um deles. Aquilo me deixou chateado naquele dia.
- isso é uma anta, disse Jadir. Esquece de pagar as contas.
_ então! Quando cheguei lá no Fórum, fiquei esperano prá ser chamado  quando prá minha surpresa, aparece na minha frente esse doutor, todo de branco, perguntando se tinha resolvido tudo lá na delegacia. Olhei pro cara e reconheci a figura, que naquele momento aparentava estar bem e seguro. Ele notou que eu estava chateado e perguntou o que fazia ali. Falei da audiência mas disse que o motivo de minha chateação era outro. Foi quando ele me pegou pelo braço, me levou para um lugar onde ninguém ouvia a nossa conversa e falou que caso eu desejasse ele poderia retirar meu nome do SPC e do SERASA naquele momento, por apenas 25 reais. Achei aquilo estranho e perguntei como ele fazia isso. Ele explicou que lá no Fórum tem um esquema de um pessoal que entra nos sites do SPC e SERASA, retira o nome da pessoa da lista suja para que ela possa fazer o crediário, mas que depois de uma semana o nome volta prá lista, quando a pessoa já efetuou o crediário e já recebeu os produtos em casa.
- ihhhh rapaz, além de estranho o cara é trambiqueiro, disse Jadir.
Você ainda não ouviu nada , disse Nelsinho e continuou. Falei com ele que não era necessário, pois o meu caso foi de esquecimento e que iria efetuar o pagamento naquele dia, logo apos a audiência. Depois disso fiquei sabendo que ele era médico, pois ele explicou que estava alí cuidando de um caso onde ele atuou como perito médico em um caso de assassinato. Ele contou que o juiz do caso estava ganhando propina para aliviar o assassino , mas que não estava distriubuindo para mais ninguém e, que por isso, ele elaborou um laudo só com termos médicos  que até médicos tem dificuldade de entender. Contou isso rindo.Disse ainda que o juiz quando recebeu o laudo saiu correndo atrás dele prá ele escrever um laudo sem aqueles termos e, foi aí que ele negociou com o Juiz a propina que ele iria receber. Depois disso me desliguei do cara e fui para audiência. Pro meu azar, quando saía do Fórum, encontro novamente com o cara na saía. Ele estava com um bafo de cana terrível, me segurou pelo braço e perguntou para onde eu estava indo. Pro meu azar ele ia pro mesmo lugar e ainda me oferceu carona no carro dele, Quando chegamos no estacionamento, levei um susto com o carro do cara. Uma BMW, último tipo do ano, isso para um médico funcionário público.
- o cara deve ser cheio de esquemas, disse Miltão já com o nariz vermelho.
Entrei no carro  e confesso que fiquei preocupado , pois o cara já estava bêbado. Quando colocamos os cintos de segurança , o cara puxou uma bolsa e disse que ia mostrar um negócio prá mim. Vocês nem podem imaginar o que aconteceu. O cara abriu a bolsa e puxou  pelos cabelos uma cabeça de homem, branco, de mais ou menos quarenta anos. Levei um susto filho da puta e cheguei mesmo a gritar ao ver uma cabeça, com os olhos arregalados e a boca aberta. Me deu vontade de vomitar até sair do carro , enquanto o cara ria. Peguntei o que ele ia fazer com aquilo e se ele não tinha medo de ser abordado pela polícia com uma cabeça numa bolsa. Ele disse que como médico sempre tem uma boa desculpa , caso os policias o abordem na rua. Se a desculpa médica não colar, ele disse que a propina rola. Explicou que estava levando   a cabeça para enviar pelo correio para a casa de um sujeito que estava perseguindo um amigo dele no trabalho , e que aquilo era tipo uma ameacinha para o cara que estava perseguindo o amigo dele.
- porra, Nelsinho. Esse cara é barra pesada, dise Miltão
-E tem muito mais, disse Nelsinho e continuou. Pedi prá guardar a cabeça enquanto ele explicava os motivos . Saimos dalí e fomos prá Copacabana, onde ambos tinham seus destinos. No percurso, o cara ainda me perguntou se eu tinha resolvido tudo certo no acidente em que me envolvi, pois caso meu carro tivesse sido muio avariado , e se eu tivesse seguro, ele tinha um esquema de desmanche prá carro. Disse que  como eu tinha dado entrada na delegacia o esquema não valia prá mim, Falou que em caso de acidente de carro, com perda quase que total do carro, o melhor é não registrar na delegacia, desmanchar o carro todo, e entrar no seguro como se o carro tivesse sido roubado, de preferência em um dia de jogo no Maracanã, onde estaria estacionado.
- porra ô anta, esse cara é bandido.
- bandido é pouco, o pior você vai ouvir agora, disse Nelsinho e continuou. Quando chegamos em Copacabana, o cara me agarrou e levou para uma bar. Como tinha tempo acabei aceitando. Começou a encher a cara pesado e me contou que na profissão dele, na justiça, ou mesmo no hospital público, ele faz o que bem entende. Ele disse que faz o diagnóstico que bem entender, caso esteja em jogo uma propina, Falou que as melhores propinas são de retiradas de rins, de pessoas saudáveis, ingênuas, de pouca instrução que usam o SUS. Se as pessoas não questionam, e a maioria é ingênua não questiona, ele dá o diagnóstico de um rim comprometido, diz que tem que operar e retira o rim para o negócio, enquanto a pessoa vai viver com apenas um rim, sem saber que foi parte de um esquema. Disse também que para aliviar o hospital, eles praticam eutanásia, por conta própria em muitos pacientes em estado terminal, isso para desocupar leitos , até mesmo em clínicas e hospitais particulares, dependendo do interesse envolvido. Contou, também, que estava fazendo hora alí, pois iria visitar uma paciente dele, de trinta anos, diagnosticada com um cancer que  dará a ela  mais três meses de vida. Disse que como a mulher é bonita e gostosa, iria aproveitar a fragilidade dela prá tentar dar uma trepada como ela naquele dia. E também falou que tem com hobby colecionar carrinhos de brinquedo. 
- porra! Isso não é só bandido , é um filho da puta, psicopata, uma cara perigoso. Com é que vocẽ põe uma porra dessa aqui na mesa, Nelsinho, perguntou Miltão 
- isso é uma anta, disse Jadir.
- eu não coloquei ninguém aqui.Vocês viram que le estava no bar e me reconheceu e foi sentando na mesa, disse Nelsinho.
- um bandidaço, que ainda por cima tem um mau hálito filho da puta. Olha que eu estva até um pouco distante dele aqui na mesa e mesmo assim senti um fedor do cacete quando ele falava, disse Jadir e continuou. Imagine a medicina. Isso é um perigo a gente sair por aí entregando a nossa saúde para que esses caras digam o que fazer.
- ppera ái, disse Miltão já não apenas com o nariz vermelho mas com todo o rosto vermelho. Esse cara não é a regra. Ele não representa a imensa maioria dos médicos, que são corretos e dedicados com os pacientes. Ele é bandido. E bandido tem em tudo que é lugar, até mesmo no Vaticano, onde Deus é citado todos os dias. Entretanto, com o crescimento dessa lógica de que tudo no mundo é mercadoria, concordo com o Jadir que a tendência é que figuras  e práticas como essa cresçam cada vez mais. Nessa lógica, seja na medicina, nas relações interpessoais, na segurança pública, ou seja, em todas as esferas da vida, o que vem ganhando espaço é a tirania e a barbárie. Isso é perigoso. Presta atenção sua anta, disse Miltão apontando o dedo para Nelsinho. Se essa porra sentar de novo aqui  na mesa eu vou expulsar esse cara daqui.
Depois das palavras de Miltão fez-se um silêncio na mesa. Todos demonstravam, ou tentavam demonstrar que estavam ocupados com alguma coisa, ora bebendo um gole da bebida da mesa, ora, verificando alguma coisa anos bolsos, ou mesmo olhando para os lados. O silêncio persistia, e junto com ele uma sensação de repulsa, até mesmo de nojo, por ter convivido , mesmo que por alguns instantes, com uma pessoa tão asquerosa. O hospital que existe em frente ao bar contribuia para um clima nada agradável, sempre que os olhos para ele se moviam. Olsen se aproximou  e informou sugerindo  que acabara de sair, fresquinha e quentinha, uma isca de fígado acebolada que estava talibã.
Os olhos de todos na mesa se cruzaram, certamente lembrando de rins e  
cabeças. Miltão agradeceu e rejeitou a sugestão.  Para piorar o silêncio, uma ambulância, em fente ao bar, pedia passagem com a sirene ligada. Já era demais. Foi o estopim para que me despedisse de todos , na primavera talibã.

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