quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Diários de Botequim - 2 Uma Nova Democracia

Diários de Botequim - 2   Uma Nova Democracia






Em meio a muita gozação devido a decisão de um título estadual com um gol de barriga, as discussões ferviam naquele ano de 1995 no bar referência. Uma semana após a conquista do Fluminense, naquele inesquecível Fla-Flu, o assunto ainda rendia pelas esquinas, praias e mesas de bar. Em um agradável final de tarde de uma sexta-feira encontro Miltão, Nelsinho e Jadir sentados  a mesa do bar. Ao me aproximar Miltão sugere com um aceno de mão para se juntar aos três. Olho aos lados para encontrar uma cadeira, mas Miltão toma a iniciativa e grita com Olsen para providenciar um lugar para mim. Olsen, o garçon, é um pretinho da cor de carvão, simpático e atencioso, que é assim carinhosamente chamado com um nome escandinavo pelos frequentadores do lugar. Imediatamente Olsen organiza o local e encaixa uma cadeira na mesa. Uma mesa com a presença de Miltão, sempre tem seu comando. Advogado aposentado, experiente e bem humorado,  Miltão comanda as conversas no bar. Nelsinho, como de costume, todo arrumadinho na esperança de ser bem sucedido em alguma paquera, o que já vem causando um desespero no rapaz. Jadir, funcionário público, meia idade, voltava do trabalho e parou, ainda com gravata e tudo mais, para poder relaxar e  encarar o final de semana com a patroa, como ele mesmo dizia. Fui me acomodando na mesa e Miltão, tricolor como eu, infernizava o coitado do Nelsinho, que não estava interessado no assunto, olhando para todos os lados procurando não sabia o quê, talvez ele mesmo. Sobre a mesa duas garrafas de cerveja dentro de um isopor. De repente, Miltão muda o tom , assustando todos em volta, e dá um esculacho em Olsen.
- já avisei prá você não completar o copo enquanto eu não terminar de beber. Será que eu vou ter que falar mais vezes, disse olhando para o assustado Olsen que apenas balançava a cabeça dizendo já ter compreendido. Enquanto Olsen fugia de Miltão, Jadir saiu com essa:
- o copo sempre cheio é aflitivo , não é ? perguntou para Miltão.
- claro, respondeu abrindo os braços e evidenciando a enorme barriga. Continuou. Quando o copo está cheio, todo mundo sabe, a gente tem que dar aquele gole, colocar o copo sobre a mesa, continuar a conversa, olhando vez por outra para o copo, sabe como é que é, administrando o tempo e a bebida. Se o Olsen a todo momento preenche o copo, a gente tem que beber porque ele não pode ficar cheio e isso cria uma aflição, uma angústia podendo até mesmo desencadear um descontrole com a bebida.
- é psicológico, comentou Nelsinho.
- psicológico o cacete, rebateu Miltão e continuou. Para de falar besteira, o assunto é sério. Rapidamente percebeu alguém entrando no bar e comentou com todos mudando o assunto.
- aquele cara alí não é ator de novela, perguntou falando baixo e ao mesmo tempo dando um esporro em Nelsinho para que fosse mais discreto no olhar.
- é da globo, falou Nelsinho
- tá com um mulherão, hein, rebateu Jadir.
- enquanto o casal se ajeitava em uma mesa Miltão disparou:
- aquela só tá com ele por causa da fama do cara. É ou não é ? Aquele cara não tem estatura prá ter um mulherão daquele. Ela encostou nele prá ver se consegue alguma coisa, não é ?
- claro, disse Jadir. Quem sabe ela não consegue uma vaguinha na emissora, um programa infantil, ou outra coisa prá subir.
- programa infantil só se o cara fizer mil gols, disse Miltão e largou uma gargalhada indecente coçando a genitália. Aquela alí pode levar uma figuração em programa humorístico e olhe lá. Rapidamente mudou de assunto e segurou o braço de Olsen que passava ao lado e disse:
- pega aquela mesa e coloca mais para o lado. Já é a segunda vez que você esbarra em mim quando passa por aqui. Coloque a mesa mais para o fundo para aumentar a passagem e assim evitar problemas futuros. Entendeu, pergutou com firmeza . Olsen imediatamente fez o que Miltão determinou. Impressionava o domínio de Miltão na mesa do bar. Alí ele comandava todos e todas as ações, prestando atenção em tudo que acontecia ao redor. Prá variar disparou pra cime de Nelsinho:
- pára de olhar prá mulher do cara, porra, disse para o atônito Nelsinho que a cada esporro dava mais um gole de cerveja. Foi quando entrava no bar um casal conhecido de Miltão. O homem, de boa aparência ,devia ter não mais de trinta e cinco anos enquanto a mulher, também muito bonita e bem vestida tinha próximo dos cinquenta. Miltão levantou-se, abraçou os dois falou alguma coisa  rápida com ambos e voltou para a mesa. Nelsinho, curioso foi logo peguntando:
- você conhece os dois ?
- claro, porra, não viu que nos abraçamos e conversamos. Aliás a história desse  cara é curiosoa. Vou contar prá vocês, mas não fica olhando prá eles  não, viu Nelsinho. Ele eu conheço desde menino, é filho de um amigão meu que já morreu. Certo dia , quando ele tinha uns vinte  e sete anos ,foi bater na minha casa pedindo ajuda. Ele tremia e mal conseguia falar e se explicar. Eu já sabia que ele tinha problemas de insegurança, medo e era um rapaz muito frágil. No dia seguinte levei a um médico que deu uma licença prá tratamento psiquiátrico e logo depois do tratamento ele teve outra crise e que culminou com uma aposentadoria precoce.  Ele não é agressivo, pelo contrário é  retraído porém extramamente inseguro. Logo depois ele conheceu essa mulher, que é a mulher dele, e ela se ligou no rapaz.
- porra, se ligou em maluco, perguntou Jadir.
- pega leve, ele tem problemas mas não rasga dinheiro e , como você pode ver é uma pessoa de boa aparência. Essa mulher é milionária,fazendeira gostou dele e estão vivendo em um tremenda fazenda no interior de Minas.
- mas ela é bem mais velha, retrucou Jadir.
- é verdade, mais  é gente boa, cuida bem dele e ele tem e comparece  com o que ela precisa, entendeu ,perguntou fazendo um gesto abrindo os braços com as palmas das duas mãos para cima como se estivesse falando dele mesmo.
- e eu não dou uma sorte dessas, disse Nelsinho.
- porquê você não é maluco, é burro, disse Jadir  para gargalhada de Miltão.
Miltão, gritou por Olsen que veio de imediato.
- presta atenção, disse e continuou. Vou querer uma porção de carne seca  e outra de cebola . Separadas, entendeu ? A cebola é passada na frigeira, no azeite português. Entendeu ? Já a carne seca deve ser bem desfiada. Da outra vez você trouxe uma porção que tinha pedaços grandes de carne, tem que ser toda desfiada, entendeu ? Manda também umas torradinhas para acompanhar. Agora, as torradas devem ser crocantes nas bordas e macias por dentro, nada de torrada toda dura, entendeu ?  Traga também aquela lata de azeite português que tem um furo maior, sabe qual é , não é ? Entendeu tudo ?
Olsen balançou a cabeça afirmativamente e foi providenciar o pedido de Miltão.
- que negócio é esse de lata com furo maior, perguntou Jadir.
- sabe como é Seu Manoel. As latas de azeite tem um furo que prá sair uma gota leva um tempão. Aí eu conversei com ele, disse que entendia a preocupação dele em economizar o azeite e coisa e tal, mas que para os fregueses especiais ele deveria ter uma lata com um furo maior. Ele concordou e o Olsen já está informado.
- bom saber disso, disse Jadir com um sorriso.
Enquanto isso Zé Maria, um outro amigo, jornalista autônomo, se aproxima da mesa.
- ihhh! tá uma gracinha com essa bermuda e essa camisa cheia de florzinha, disse Miltão.
- hoje ele está mais para Mariazinha do que para Zé, completou Jadir
- Olsen ! Olsen ! Arruma um lugar alí, naquele canto, para o nosso amigo, disse Miltão. Imediatamente Olsen seguiu as instruções e encaixou mais uma cadeira na mesa.
- aproveita e limpa a mesa que está molhada. Mas toma cuidado prá não respingar em mim.
- você anda sumido, O que houve, anda devendo dinheiro prá alguém , perguntou Miltão.
- nada disso, estava trabalhando. Aliás, falando em dinheiro, quando vinha prá cá, encontrei aquele teu amigo, o Cardoso. Ele tentou por todas as maneiras me vender uns produtos de limpeza, insistiu tanto que quase comprei.
- Eu que arrumei prá ele vender esses produtos, disse Miltão e continuou. O Cardoso é aposentado e a aposentadoria dele é pequena e ele torra tudo em vinte dias e depois ficava atrás de todo mundo pedindo um qualquer. Uma vez ele me ligou dois dias depois  que eu recebi meu salário. Ele , assim como eu, sabe o dia que a gente recebe e me ligou cheio de alegria para conversar no bar e coisa e tal. Não demorou e me pediu dinheiro. Eu emprestei e no mês seguinte ele fez a mesma coisa , mas eu saquei , fui ao encontro mas não dei dinheiro prá ele. Disse que iria arrumar um negócio prá ele ganhar um dinheirinho e ele topou. Falei com um amigo meu e passei esses produtos prá ele vender. Comprei prá ajudar, aliás os produtos são uma merda. Nunca vi produto de limpeza que fede, mas tudo bem. E o Cardoso é bom de conversa, ele conseguiu empurrar até pro Seu Manuel, e olha que vender alguma coisa pro português não é fácil. Pelo menos agora ele não pede dinheiro, mas se encontrar com ele vai ser difícil não comprar os produtos.
- ele estava com o Toninho. O Toninho também tem uma aposentadoria baixa, não tem, perguntou Zé Maria.
- a aposentadoria do Toninho é igual a do Cardoso, mas a mãe do Toninho tem uma pensão muito boa do marido, milico, e o Toninho ajuda a gastar o dinheiro da velha.  Mas e aí, por onde você andou ?
- estive quase um mês no México, disse Zé maria.
- Ahhh! agora entendi a camisa de florzinha. Estava tirando onda em Acapulco, perguntou Jadir.
- nada disso, estava do lado oposto, no estado de Chiapas.
- Chiapas ???  Foi fazer alguma matéria sobre os zapatistas, perguntou Miltão.
- exatamente
- então conta aí, o que você descobriu por lá, disse jadir
- bem, eu fui  para o município de San Cristóbal de las Casas, reduto do movimento. Tudo começou com um grupo urbano , de orientação marxista, que foi para aquele estado com o intuito de conscientizar a população para uma revolução. Acontece que no contato com a população local, de maioria indígena Maia, os marxistas se surpreenderam com a cultura e valores daquele povo. Parece que a conscientização foi de mão dupla, e os  marxistas tiveram que assimilar grande parte da cultura indígena. O movimento se organizou mas não não tem um chefe, um líder, tudo é decidido em conselhos da comunidade. Tanto que   aquele que a imprensa chama de chefe tem o título de sub comandante, algo como um representante, primeiro ministro da população. Quando eles se fizeram conhecer, no início do ano passado, logo depois toda a esquerda mundial  foi para San Cristóbal, afinal , depois da queda do muro foi o primeiro grande movimento de contestatção ao sistema capitalista e ainda no dia em que o México assinava o acordo de livre comércio com os EUA e o Canadá. Muitos representantes da esquerda mundial, que lá estiveram, não conseguiram entender com muita profundidade o movimento, talvez por conta da riqueza e complexidade da cultura dos povos indígenas da região. Esperavam por um movimento revolucionário tradicionalmente marxista, mas  não é bem assim. Existem muitos e importantes elementos da cultura indígena na filosofia dos Zapatistas. Interessante, que no contato que tive com algumas lideranças indígenas, que eles sempre usavam palavras e expressões como proteger, cooperar, participar, bem viver, partilhar, preservar e outros nessa linha. Neste aspecto eles estão em perfeita sintonia com os movimentos ambientalistas, e nos aspectos de governança não abrem mão da participação popular e democrática. Outro aspecto que me chamou a atenção foram as referências aos ciclos da natureza, quase sempre presentes em muitas considerações. Disseram, inclusive, que alí se estava iniciando um novo ciclo, que iria se consolidar nos próximos trinta anos, onde o protagonismo dos  povos indígenas de todas as Américas seria cada vez mais forte, tanto no comando de governos quanto influenciando novos líderes das Américas. Disseram ainda que a América seria a referência para o mundo de uma nova democracia, com novas formas de produção e bem viver. Citaram a profecia de etnias indígenas americanas sobre a chegada dos guerreiros do arco-íris, aqueles que iriam lutar para salvar o mundo da devastação e destruição das formas de vida, Ainda falaram sobre sobre a profecia do líder boliviano, Tupac Katari, que ao morrer executado pelos espanhóis disse voltaria em milhões. A cultura daquele povo é riquíssima, profunda e complexa, tanto que me interessei em conhecer mais sobre eles.
- boas falas. Nesse marasmo de idiotice do tempo em que vivemos, saber que novas concepções de esquerda, novas idéias são bem-vindas, disse Miltão.
- é verdade e também é interessante que eles não rejeitam tecnologia, desde que não destrua a vida. Acredito que a tese deles é poderosa, conceitualmente e é bom não duvidar da força da cultura dos povos indígenas das Américas, disse Zé Maria .
- muito bom, disse Jadir e continuou. Vamos aproveitar e mandar o Nelsinho para o Xingú, quem sabe ele não vira cacique por lá e se ajeita.
Prá variar a conversa já descambava para gozação em Nelsinho, com Jadir e Miltão mirando no rapaz e fazendo uma bola de neve com cada vez mais bobagens. Zé Maria e eu nos desligamos da gozação e mantivemos uma conversa paralela, quando Zé me avisou que no dia seguinte iria a um ciclo de palestras , sobre os Maias, em uma loja de um sociedade secreta. Me convidou e no dia seguinte tivemos um dia fantástico. Começa, também para mim, um novo ciclo.

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