quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Diários de Motocicleta - 2 O Médico Que Gostava de Gente


Diários de Motocicleta -  2     O Médico Que Gostava de Gente





O pequeno relógio marcava quatro horas da tarde. Estava na estrada desde as seis da manhã, em um dia com chuva, de moderada a forte , sem nenhum período de estiagem. Mesmo com todos os cuidados e o aquecimento que as roupas e equipamentos de segurança proporcionam, além de um macacão impermeável para  me proteger da chuva, meu corpo já dava pequenos sinais de hipotermia.  A capa protetora para a chuva estava coberta com uma fina camada de água e poeira, assim como a viseira do capacete, o que já dificultava a visibilidade.  Já em uma via secundária, de terra e esburacada onde já estava  rodando por quarenta quilômetros, que na ocasião era lama, me aproximava de uma  pequena cidade no litoral extremo sul do estado da Bahia. Dias como aquele, quando se chega ao destino, se tem uma sensação de alívio e vitória. Entrei na área central da cidade e parei em um estabelecimento comercial, onde um pequeno grupo de pessoas, que poderia ser uma multidão  para o vazio da cidade , fazia suas compras. Estacionei a motocicleta, em uma proteção de marquise em frente ao estabelecimento e comecei todo o procedimento  de retirada dos equipamentos  de proteção. Reparei que todas as pessoas, ali presentes, interromperam suas atividades e passaram a me observar. Tinha me tornado uma atração de final de tarde com chuva em cidade do interior. Me dirigi para o interior do estabelecimento e abordei um senhor, encostado no balcão, perguntando se poderia me indicar a localização de uma pousada que tive informações em um guia de viagem. Outras pessoas próximas ouviram minha pergunta e logo um grupo se formou em volta de mim, onde , todos ,ao mesmo tempo, falavam sobre a pousada. A recepção me pareceu que aquelas pessoas eram amigáveis o que pude confirmar com os dias que permaneci na cidade.  Vestido, ainda com uma jaqueta de couro abotoada até o pescoço e sentindo frio, em um local onde todas as pessoas estavam com bermudas e camisetas de manga curta, era natural que eu despertasse curiosidade. Pedi um copo de café quente com conhagc  e um homem ,com o rosto rabiscado pelo sol e o  mar, que bebia cachaça com outros logo emendou:
- é bom, esquenta, demonstrando entender exatamente o que se passava comigo
- passei todo o dia na chuva, disse esfregando as mãos
Bebi dois copos de café bem quente, o que aliviou a sensação de frio ,e voltei para a motocicleta em direção a pousada. Localizada na principal rua da cidade , tinha o mar a frente protegido por um paredão onde as pessoas sentavam para conversar ou pescar com linha . O dono, um senhor atarracado, branco , calvo, com a face misturando tonalidades de rosa e vermelho, um nariz bem vermelho, aparentando mais de sessenta anos, com um jaleco de médico, e óculos meia taça, me olhou por cima dos olhos  e disse:
- sim, tem quarto disponível. Aliás, o senhor será o único hóspede. Essa época do ano o movimento é fraco. O senhor veio de motocicleta, me perguntou demonstrando surpresa pelo fato.
- sim,  é um meio de transporte econômico e proporciona integração com o ambiente.
- interessante, comentou e com um sinal de braço sugeriu que o acompanhasse.
No dia seguinte, depois de um descanso merecido, acordei e fui tomar o café da manhã em companhia do dono da pousada, agora Dr.Mauro, médico ,clínico geral, casado e pai de dois adolescentes que passavam a maior parte dos dias deitados no paredão olhando pro céu , ou dormindo.
Uma mesa farta com mingau de sagú, bolo de aipim , manteiga líquida, queijo  branco, mamão, leite, pão e café formavam os ingredientes para uma boa refeição e também uma boa conversa.  Dr. Mauro não perdeu tempo. Mandou um interrogatório querendo saber tudo sobre minha vida, profissão , cidade onde residia, etc.. Médico,experiente, acostumado no trato com pessoas, também era uma pessoa bem humorada, o que fazia do café um encontro agradável. O tempo ainda estava de cara feia mas sem chover, o que me aninou a sair para explorar e conhecer o lugar. Dr. Mauro deu algumas dicas de locais que poderia visitar e ainda me convidou para o lanche da noite, o que aceitei e agradeci, já que a estadia  incluía apenas , como refeição, o café da manhã.  Liguei a motocicleta e ele logo emendou:
-interessante com você usa bem esse meio de transporte, disse com um ar enigmático.
Já era a terceira vez que ele repetia aquilo. Fiquei me perguntando o que ele queria saber , ou o que ele gostaria  que eu falasse sobre o uso de motocicleta. Ao mesmo tempo, ele entrou em um fusquinha e saiu. Passei o dia explorando o lugar, conversando com pessoas ou simplesmente olhando o mar, o que aliás me chamou atenção pois o número de pessoas que ficavam sentadas no paredão olhando para o horizonte era significativo. E eram pessoas do lugar, moradores. Vez por outra, um falava alguma coisa , o outro ao lado respondia e o silêncio voltava a prevalecer. Os filhos de Dr. Mauro também estavam lá, deitados e dormindo. Um deles cruzou comigo, quando saia da pousada, me cumprimentou educadamente, e com uma expressão de cansaço se dirigiu para o paredão. A noite chegou e Dr. Mauro me chamou para o lanche. Sopa de legumes, o bolo do café da manhã, mingau, pão , banana frita e refresco de laranja. Resolvi conhecer um pouco sobre o Dr. e tomei a iniciativa das perguntas.
- o Sr. atende em consultório, perguntei enquanto retirava um fio de aipim que veio na colherada de sopa.
- aqui não tem consultório , meu jovem. Atendo aqui mesmo em casa ou na casa das pessoas
- e tem clientela  numa cidade tão pequena ?
O homem me olhou nos olhos  e disparou:
- o jovem parece que pensa que aqui é Rio de janeiro. A realidade aqui é bem diferente  Uma cidade pequena, onde a maioria da população é paupérrima, que vive do que planta e colhe, além da  pesca e do turismo apenas nos meses de verão. Ninguém aqui tem dinheiro o suficiente para pagar regularmente consultas médicas, comprar remédios. O pouco que se tem é para a comida , isso quando as pessoas tem. Caso contrário comem peixe no café da manhã, no almoço e no jantar.
- mas se não tem para pagar a consulta com é que que o doutor vive, com mulher o dois filhos.? Percebi que invadi e fui indelicado e me desculpei da pergunta.
- não tem que se desculpar, falou com firmeza e continuou. Sua curiosidade é normal. Você é engenheiro, tem boa formação, tem emprego, vive em uma grande cidade onde a realidade é bem diferente. Na sua cidade a prática da medicina é um negócio onde quem tem dinheiro paga por serviços médicos que são oferecidos como sendo os melhores. Aqui a prática médica é uma vocação. Aqui , para ser médico, em primeiro lugar o sujeito tem de gostar de gente, caso contrário vai ser médico no Rio ou em São Paulo. Não cobro por consultas e não deixo uma pessoa sem consulta , sempre que sou solicitado. Aqui meu jovem, o trabalho é coletivo. Me pagam como podem, com dinheiro, com comida, com peças de carro, com as rendas que as costureiras fazem, com  ajuda de mão de obra na alta temporada tipo faxina , trabalho de construção civil, bombeiro hidráulico e até , como acontece, com um simples aperto de mão ou um abraço sincero de uma mãe que teve o filho medicado e cuidado por mim. Mas o que eu mais recebo é peixe. Peixe de tudo que é jeito , disse com um sorriso. Claro que necessito de mais recursos e a pousada é uma fonte importante na renda de minha família, principalmente na alta temporada pois fica quase que lotada por três meses o que dá para guardar um dinheirinho pra complementar o ano. É quando, também,  a população da cidade consegue ganhar algum dinheiro prá não ter que viver o ano inteiro só comendo peixe.
- uma medicina social, comentei
O doutor me olhou de novo nos olhos e disse:
- uma medicina dentro das possibilidades do lugar, realista, voltada para cuidar de quem precisa, com aquilo que se tem disponível no lugar. Se não tem droga sintética , como acontece sempre, vamos de medicamentos fitoterápicos, que são eficazes em muitas situações e disponíveis na região. Se não tem bisturi usamos um canivete esterelizado ao fogo, Se não tem água destilada, vai água fervida. Se não tem soro, como por exemplo glicose, vai caldo de cana. Aqui o médico também é químico , botâncio, psicólogo, engenheiro e por aí vai, meu jovem. Uma coisa é certa. Ninguém aqui fica sem atendimento médico, seja pobre ou rico. Tem gente aqui na cidade que tem dinheiro , são poucos, mas que se consultam comigo e prá eles também vale o mesmo. Eu não estabeleço um valor para o atendimento eles pagam o que consideram justo. Na maioria dos casos pagam bem , mas sabe como é que é , tem sempre uns mão de porco  que adoram explorar os outros.
- isso me parece Marx, comentei provocando o Doutor.
Doutor Mauro, riu e falou
- se você entrar em uma discussão sobre trabalho, remuneração,exploração, independente se estiver acontecendo em um encontro de orientação comunista ou de  orientação capitalista, você verá que as idéias de Marx estarão presentes, seja para apoiá-las ou para demonizá-las, ou mesmo que não se esteja discutindo sobre suas idéias, elas estarão lá, de alguma forma. Uma coisa , meu jovem, me parece clara. A exploração do homem pelo homem  não é o caminho adequado para a evolução, nem as religiões também não o são e muito menos o capitalismo.
A conversa caminhava bem quando alguém bateu na porta. Um sujeito carregando uma criança que devia ter uns cinco anos, e que sangrava muito devido a um corte profundo no braço . Dr. Mauro se levantou , ignorou minha presença e nossa conversa e encaminhou o paciente para o quarto . Me levantei e fui andar um pouco pela noite. Sentei no paredão e fiquei a olhar o mar, na escuridão da noite escura, na cidade onde a vida não é um negócio.

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