segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Diários de Motocicleta - 4 A Tortuosa Estrada da Vida

Diários de Motocicleta - 4  A Tortuosa Estrada da Democracia






A Aldeia tinha ficado para trás mas jamais sairá de minha memória. Em mais um dia de estrada, com sol e calor, já tinha cruzado o Rio São Francisco, todo o estado de Sergipe, o norte do estado da Bahia, contornado a cidade de Salvador, e avançava rumo a um arraial no sul da Bahia. Estava naquela hora do dia em que luz e sombra, noite e dia se confundem o que exige muita atenção pois as diferenças de luminosidade vão se misturando, a visão requer ajustes todo o tempo e o cansaço natural de um dia de viagem fica ainda mais acentuado. Já começava a programar uma parada para pernoite pois queria evitar a noite na estrada. Um vilarejo surgiu na frente e resolvi entrar e avaliar o lugar. Um lugar pobre, com características rurais e nenhum sinal de local para hospedagem. Abordei um homem , que me observava  assustado enquanto falava, sobre um lugar para passar a noite. Indicou uma casa, próximo de onde estávamos mas se afastando da estrada. Cheguei no local e fui recebido por um homem, com um chapéu de palha, típico da roça  que me apresentou o lugar. O quarto não tinha cama, apenas ganchos para colocar a rede. Avaliei  e resolvi ficar, enquanto os quatro filhos do homem e sua mulher ficavam me observando sem parar. Retirei minha rede e coloquei no lugar. O quarto tinha duas janelas, sendo que  a rede ficava bem próximo, quase encostando em uma delas, enquanto a outra ficava um pouco mais distante. Da janela próxima da rede se avistava uma pequena roça enquanto da outra, e próximo, descansavam duas vacas. Depois de um banho reparador deitei na rede. O balanço, associado a todos os elementos do lugar, fizeram como se estivesse nascendo nos braços da virgem Maria. O sono veio rápido. Dormi sem interrupções e acordei pela manhã bem cedo, assustado,  com o mugido de uma vaca que  pelo barulho parecia estar ao meu lado. Olhei ao lado  e a cabeça do animal estava próximo da janela. Em fração de segundo  fui me situando onde estava e relaxando. Espreguicei e me virei para o outro lado, onde a janela era bem próxima  e dei de cara com um gato, a poucos centímetros de mim, deitado e me olhando. Levei um baita susto e o movimento brusco que fiz , fez com que o gato  desse um pulo para fora. Até hoje não sei quem ficou mais assustado, se eu o  gato. Depois dos sustos, arrumei toda e bagagem e levei para a cozinha onde teria um café. A família toda estava na cozinha e ficaram mudos e me observando quando entrei. A mesa foi uma surpresa. Café, leite, pão, bolo de fubá mamão, mingau de tapioca, manteiga, queijo e uma farofa de carne de sol e ovo. Sentei a mesa e o casal, juntos com os quatro filhos, todos de pé encostados na parede mudos me observavam. As crianças estavam alinhadas pela altura, do maior ao lado da mãe, para o menor na extremidade. Lembrei que já tinha visto aquela cena em algum filme, ou em vários, mas no momento não me lembrava de nenhum. Resolvi puxar uma conversa, elogiando o café e outras coisas do tipo, na tentativa de quebrar aquela situação. Foi quando um dos filhos, o mais novo que devia ter  quatro anos, se separou do alinhamento familiar e foi mexer no meu capacete que estava junto com a bagagem. A mãe foi direta:
- larga isso, menino. Não sabe que não se mexe na coisa dos outros, disse com firmeza.
Aproveitei a deixa para mudar o clima e peguei o capacete, coloquei na minha cabeça e depois fiz o mesmo com o menino. O capacete  dançava na cabeça do menino, o que foi motivo de risadas em toda a família. Logo todas as crianças resolveram experimentar o capacete e o clima ficou mais leve. Era natural aquela curiosidade, pois aquelas pessoas não costumavam receber pessoas de grandes cidades, e conhecer hábitos e costumes diferentes é normal. Enquanto comia e bebia de tudo que tinha na mesa, as crianças brincavam e a conversa com o casal, onde apenas o homem falava, fluía sem problemas.  Bem alimentado fui acertar as contas. O valor cobrado foi irrisório, tanto que paguei um pouco mais o que deixou a família indisfarçavelmente feliz. A mulher ainda perguntou, já tomando a decisão, se queria levar um pedaço de bolo para comer durante a viagem, pois deve ter percebido que não economizei no bolo durante a refeição. Aceitei, claro. Cuidadosamente acondicionou uma fatia generosa, embrulhada em papel de pão, e me entregou , revelando satisfação.  No momento da partida, parecia uma despedida de família,  todos na porta, acenos e pedidos para que quando voltasse  ao lugar fosse ao menos visitá-los. Peguei a estrada e com uma hora de viagem veio a chuva. O trecho era perigoso, com muitas curvas, acostamento pequeno ou inexistente e asfalto irregular na maior parte do percurso. Já na metade do dia, com chuva constante, em um trecho de curvas, tinha pela frente uma fila de seis caminhões. A estrada estava encharcada e para não aquaplanar seguia a trilha deixada pelos veículos, onde o asfalto tem menos água e sujeira. Fui me livrando dos caminhões, um por um, até chegar no último, seguindo a trilha das rodas esquerdas, próximo a faixa central. As vezes, com veículos em sentido contrário, tinha que abandonar a trilha para evitar uma proximidade maior no cruzamento e ir para o centro. E foi num momento desses atrás do caminhão e com um outro caminhão atrás de mim, que me deparei com um toco de madeira na estrada, na minha frente. Não podia frear e qualquer desvio mais brusco poderia levar a uma queda, o que seria trágico naquela situação. Em fração de segundo avaliei as opções e resolvi passar por cima do toco. Como estava com marcha reduzida, a 70 km por hora, acelerei e dei uma leve empinada na dianteira da motocicleta para facilitar a subida no toco, evitando derrapagem com a dianteira da motocicleta, e deixei todo o impacto e derrapagens para a traseira, sempre mais fácil de corrigir. E foi o que aconteceu. A roda dianteira passou com certa facilidade  e o impacto na traseira  fez com que a motocicleta dançasse  acentuadamente apara a esquerda e, com a correção que fiz, dançasse para direita para finalmente se equilibrar. Olhei pelo retrovisor e o caminhão atrás tinha dado uma boa reduzida, aumentando a distância para mim, certamente impressionado com o que viu.  Em situações de ultrapassagem de caminhões ou  ônibus e ainda com pouca visibilidade por causa das condições da estrada, deve-se sempre seguir a trilha deixada pelos pneus, pois esses veículos evitam os objetos que aparecem na estrada, entretanto nem sempre é possível e a surpresa aparece no frente. Refeito do susto, senti saudades da vaca e do gato. Ultrapassei o  último caminhão e encontrei a pista livre, mas depois de uma curva mais uma surpresa. Em uma pequena reta, avistei mais a frente, urubus se alimentando de uma animal morto no acostamento bem próximo a pista. Olhei na pista em sentido contrário e um ônibus certamente cruzaria comigo bem ao lado dos pássaros, atrás de mim, caminhões. Não podia desviar para a pista oposta e nem reduzir a velocidade e ainda teria que passar ao lado dos pássaros, pelo lado direito da pista, para evitar o deslocamento de ar causado pelo cruzamento com o ônibus, que sempre causa desequilíbrio em motocicletas. Tomei a decisão. Com os pés abaixei os apoios de pé para o carona, coloquei meus pés nesses apoios, procurei sentar bem atrás no banco e deitei o tronco por cima do tanque de combustível da motocicleta. Quase deitado, para minimizar a área de impacto no meu corpo, caso um pássaro se assustasse e resolvesse levantar voo na minha direção, engatei a sexta marcha e acelerei firme passando a uns 100-110 km por hora ao lado do animal morto e da passarada. O ônibus  que vinha em sentido contrário, com previra, cruzou comigo no lugar. Passei sem problemas e os pássaros se assustaram, levantando voos em todas as direções. Era um dia de sustos e perigos. Logo em seguida mais um caminhão na minha frente, com carregamento de areia. A lona que cobria a areia, se soltou na parte de trás , e uma chuva de areia , junto com a água da cuva, veio prá cima de mim. Dava prá sentir no corpo, mesmo com todos os equipamentos de proteção, o impacto dos grãos de areia, além, claro, do barulho que faziam quando se chocavam contra o capacete. Água da chuva, chuva de areia e a nuvem de água e sujeira jogada pelas rodas do caminhão. Realmente não era o melhor dos cenários. Tratei de me livrar do caminhão e logo que respirei aliviado vejo, na minha frente, um caminhão gigantesco carregando toras de madeira que saiam dos limites da traseira do veículo, exigindo o uso de bandeiras sinalizadoras. Me veio a lembrança de uma conversa que tive com um caminhoneiro sobre os caminhões que transportavam blocos de pedra- mármore no sul do estado do Espírito Santo. As pedras eram colocadas nos caminhões, em carroceria plana e sem nenhuma fixação. Era comum ver , nas margens da estrada, na região do mármore, blocos de pedra no acostamento pois caíam dos caminhões. Como era antieconômico aproveitar os blocos de pedras,uma vez que seriam necessários guindastes para removê-los, esses ficavam abandonados na estrada. Como o tempo, e o crescente número de blocos que voavam de caminhões, criaram-se empresas especializadas em recuperá-los nas estradas. Olhei para as toras de madeira  na minha frente e tratei de  ultrapassar aquele caminhão. Já dava sinais de paranoia e então resolvi parar para descansar, abastecer a motocicleta e fazer um lanche com o generoso pedaço de bolo de fubá. Parei logo em seguida em um posto de combustível bem movimentado.  Fiz uma revisão na motocicleta por conta do impacto com a madeira e tratei de tirar toda a lama, já que é um peso desnecessário para carregar. Enquanto me preparava para o lanche, próximo a uma lanchonete, um sujeito branco, com uma tonalidade rósea e cabelos aloirados se aproximou e disse:
- passaste um sufoco, tchê
Olhei para o sujeito, tentando entender e ele completou:
- estava atrás de ti, no caminhão, e vi quando derrapaste. Barbaridade, quase caíste.
Olhei para o caminhão que tinha placa do interior do Rio Grande do Sul. A curiosidade de caminhoneiros com motociclistas sempre se manifestou nas viagens. Conduzindo veículos gigantescos  e pesados, a motocicleta se apresenta como algo frágil.
- percebi quando você reduziu, disse
- foi o susto.O trecho agora a estrada é boa, asfalto liso. É tudo chapadão, disse se despedindo com uma garrafa térmica em uma das mãos.
Lembrei que na ida o trecho próximo era de fato bem melhor, com  asfalto liso, curvas com boa visibilidade. Talvez tudo isso , ou parte disso , seja o significado de chapadão.
Voltei para a estrada e a viagem seguia tranquila,  a chuva tinha passado e sol voltava com força. Já estava próximo de uma cidade , no sul da Bahia, onde o Brasil começou a ser saqueado há mais ou menos quinhentos anos. Ainda hoje, as principais elites econômicas do país se mantem na dianteira dos saques. Já ao anoitecer cheguei em um Arraial. Enquanto acertava os detalhes de hospedagem na recepção de uma pousada, uma hóspede, com forte sotaque paulistano,  interrompeu minha conversa com o atendente dizendo que tinha aprendido a subir em coqueiros e aproveitara para ver o por do sol do alto de um coqueiro na praia. Normal, estava no Arraial. Depois de um banho, já noite , resolvi sair para jantar no restaurante do Marcão, que como tinha me informado o atendente , continuava firme e forte no lugar. Conheci Marcão em outra passagem pelo Arraial anos atrás. Mineiro , durante o período da ditadura militar foi preso político em uma prisão militar  no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Logo foi desovado do país e viveu  nove anos no exílio, retornando em 1979. Sua mulher, também ativista política, morreu nas garras da ditadura em um porão do horror , na cidade de São Paulo. Quando retornou, Marcão foi viver no arraial e abriu um restaurante, aproveitando a experiência de nove anos como garçom no período que viveu na França. Caminhando em direção ao restaurante me deparo com um show de dança e música em uma rua do lugar.  Um violino, uma viola caipira, um violão e um atabaque formavam o grupo musical que executava uma música que me parecia ser de Bach. A coreografia da dança tinha doze pessoas. Dois casais, vestidos com roupa de gala, terno, gravata e vestido longo, dançavam, ao ritmo de um ou mais de um dos instrumentos, uma dança indígena com direito a fila indiana, batida forte dos pés e reunião circular. Outros dois casais, vestidos de índios, dançavam algo parecido com valsa ou dança medieval. Os outros dois, vestidos com roupas do tempo das cavernas, dançavam ao ritmo de pop music contemporânea. Impressionava o fato de que todos os grupos, mesmo com expressões de dança distintas,  seguiam o ritmo da música que era executada.  Normal, estava no Arraial. Seguindo para o restaurante passo por uma casa onde no jardim acontecia uma festa. O som da vitrola reproduzia o canto no idioma espanhol ao ritmo de merengue, enquanto as pessoas na festa dançavam lambada. Normal, estava no Arraial. Chego ao restaurante sou recebido com alegria por Marcão;
- surpresa boa, sô. Senta aí, disse puxando um banco próximo ao balcão .
O restaurante tinha crescido e estava menos rústico. Comentei e também disse que estava morto de fome.
- vou dizer uma coisa procê. Tem um arroz com polvo que tá bom demais, sô.  Leva umas salsazinha e óleo de coco e ainda é servido dentro do coco. Vai ?
- claro. Aqui, não tem uma boa prá incrementar o apetite ?
Marcão saiu e voltou com uma garrafa cuidadosamente nos braços. Se aproximou de mim, por trás do balcão, olhou para os lados vendo se alguém estava por perto, segurou meu braço, e próximo de meu ouvido  criando um clima como se fosse revelar o segredo da expressão da Monalisa, disse:
- essa é especial. Um amigo de BH manda prá mim. Vem de um alambique da roça. Vou colocar só um pouquinho procê provar. Em um copo de aperitivo, Marcão encheu pela metade e me serviu.
- Hummm, boa demais. Mas não é marvada , não, não é ?
- num disse procê ? Que marvada o quê, sô
 A cachaça era de tonalidade amarela, encorpada, aveludada e sabor macio e suave. Marcão encheu o copo e saiu cuidadosamente levando a garrafa nos braços como se fosse um filho. Voltou com a refeição, como dissera em uma metade de coco, cortado por baixo para que pudesse ficar fixo
 no balcão.
Logo nas primeiras garfadas não resisti e disse:
- esse trem tá bom demais, sô. Mas essa porçãozinha aqui não vai nem revestir as paredes, quanto mais preencher o vazio.
- repete quantas vezes quiser, uái.
Comentei sobre a evolução do restaurante e ele disparou.
- isso aqui tá mudando aos poucos. Há quatro anos, quando cheguei, só vinha prá cá o pessoal das mochilas. Hoje já tem hotel, resort e vou acompanhando . Minha freguesia também tem mudado. Isso vai virar um balneário de pessoal com dinheiro.
- e isso é bom, perguntei enquanto pedia uma segunda refeição.
- depende. Quem veio prá cá com aquela visão alternativa, já era. Prá mim tá bom. Se sabe, aqui tem de tudo. Mas me diz uma coisa. Foi no comício ?
- não só no comício com participei de todos os eventos na cidade :passeatas, pequenos comícios ,festas. Se viu pela tv. perguntei enquanto pedia mais uma refeição.
- que tv o quê, sô. Nos fomos prá lá, em quatro num carro. Assisti lá frente, e ocê ?
- fiquei no meio da presidente vargas, na altura da rua Uruguaiana.
- Mas foi bonito demais. Aquele povão todo na rua, unido em um ideal, gritando por democracia, liberdade, eleições diretas. Não tem nada igual  a força do povo.
- mas a emenda não passou, né. perguntei e pedi a quarta refeição.
-não passou mas os milicos vão ter que sair. Ficaram enfraquecidos. Olha aqui, vou dizer uma coisa procê. A gente aqui nas conversas , chegamos a conclusão que deve ter havido um acordo. A emenda não passa , já os milicos tem que largar o osso. Acredito que em quatro anos a gente vai votar prá presidente. Já é o início, mas ainda é pouco. Viu o que tentaram fazer com o Brizola na eleição de 82.
- aquilo foi armação, disse e pedi a quinta refeição.
- e que armação , sô. Foram os milicos  a tal da proconsult e grande parte da  imprensa, com tv globo na frente. Esses caras da tv globo não aprendem. Apoiaram o golpe de 64, se enriqueceram na ditadura e ainda queriam melar a eleição do Briza. São golpistas, entreguistas dos americanos, não respeitam a vontade popular, tentam alterar o resultado das urnas, derrubar governos democraticamente eleitos, perseguir os políticos que o povo adora. Lembra do Getúlio ? Perseguiram tanto que o homem se matou. Aí o povo foi prá rua e tentou invadir a rádio globo. Tiveram que sair do ar. Eles que continuem a desafiar o povo que o pessoal invade aquilo e acaba com eles. Eles acham que mandam na vontade popular.
- deram uma de mágico. esconderam o movimento das diretas já. disse e pedi a sexta refeição.
- eles acham que a realidade é aquilo que eles criam, noticiam e priorizam. Como falei procê, votar prá presidente é só começo. Tem muita coisa prá fazer. Já estamos com quase 21 anos de ditadura, e as coisas não vão mudar de uma hora prá outra só tirando os milicos do poder. Toda uma geração, uma cultura , foi formada no autoritarismo ,na ditadura. Entra um presidente mas o autoritarismo continua entranhado no estado, nas elites entreguistas. A democracia é muito, mas muito mais que um simples voto. É a participação popular em todas as esferas do poder, é o equilíbrio na produção , é o equilíbrio na produção de informação e cultura,é a garantia dos direitos básicos do povo, é o povo no poder. Ainda vai levar muito tempo, mas a gente consegue. Vai mais ?
- estou satisfeito.

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